O
artigo da Folha de São Paulo
Na edição de 19 de novembro último,
um artigo publicado pelo jornal Folha de São Paulo transformou em notícia
nacional os hábitos alimentares de uma comunidade no interior de Portel e sua
relação com o programa Bolsa Família, do Governo Federal, ao mesmo tempo em que
desnudou todo o preconceito da mídia contra os que precisam dos programas
sociais.
O artigo, intitulado “Na Amazônia,
Bolsa Família causa ‘efeito mortadela’ entre ribeirinhos”, divulgou os
resultados de pesquisa realizada pela bioantropóloga norte-americana Barbara
Piperata junto a comunidades do Caxiuanã, no rio Anapu, interior de Portel.
Tomando como ponto de partida uma pesquisa científica, o artigo é um belo exemplo de como o desconhecimento
sobre a Amazônia e o viés ideológico da mídia distorcem a visão dos fatos.
Em seu artigo, o principal foco do
jornalista Gabriel Alves é quanto à conclusão da pesquisadora de que o
recebimento do benefício do Bolsa Família diversificou, mas não melhorou a
alimentação dos ribeirinhos. Resultado esse chamado pelo jornalista de ‘Efeito Mortadela’, em razão da
introdução desse item na alimentação dos beneficiários. Entre os comentários
publicados no site, muitos leitores foram rápidos em condenar o “assistencialismo”
bancado pelo Governo Federal.
Assim, o tom do artigo é claramente
negativo quanto aos efeitos do programa Bolsa Família, ainda que mencione a
afirmação da bióloga quanto a ser difícil afirmar se os impactos do programa
são bons ou ruins. Na conclusão, afirma-se também que não há interesse por parte
dos pesquisadores brasileiros em pesquisar regiões afastadas, e que tampouco
houve interesse por parte dos representantes dos governantes quanto aos resultados
da pesquisa.
Apresentação
da Pesquisadora Barbara Piperata
A professora Barbara Piperata é
bióloga formada pela Universidade do Colorado, nos Estados Unidos, onde obteve
PhD em antropologia, e atualmente é professora na Universidade de Ohio. Seu
principal campo de pesquisa é em energia reprodutiva, no estudo de práticas e
estratégias pós-parto visando a conservação de energia para a lactação pela mãe
e as condições de saúde do bebê.
Realizados nas comunidades
ribeirinhas de Caxiuanã, no rio Anapu, em Portel, seus estudos comprovaram a
situação de insegurança alimentar na população do interior do município e
registraram detalhadamente os hábitos alimentares dos entrevistados. Os dados
foram levantados em dois períodos. Primeiro em 2002, quando a bióloga morou
durante dois anos no Caxiuanã, e avaliou 469 pessoas. O segundo em 2009, quando
foram examinados 429 indivíduos.
Os dados foram publicados em 2011,
em um artigo no American Journal of
Physical Anthropology. Em novembro, Piperata apresentou os resultados de
seu trabalho em evento do Centro de Pesquisa em Alimentos, na USP.
As
conclusões da Pesquisa
Antes de fazer uma análise
superficial e enviesada, é preciso refletir bastante sobre as constatações da
pesquisadora norte-americana em Caxiuanã.
Entretanto, ao fazer aqui uma
reflexão sobre a publicação da Folha de São Paulo, é preciso admitir, em
primeiro lugar, que não tive acesso direto ao artigo da professora Piperata, o
qual não está disponível gratuitamente ao público. Logo, não questiono o valor
da pesquisa da autora, a qual se reveste da maior importância. Minhas
conclusões se referem àquelas relatadas no artigo da Folha de São Paulo.
A principal conclusão do artigo do
jornal é de que “a renda extra do Bolsa Família não melhorou os hábitos
alimentares na região”. Os ribeirinhos agora conseguem ter acesso a produtos
que eles antes apenas ocasionalmente podiam obter, tal como feijão e arroz, mas,
por outro lado, aumentou o consumo de alimentos não saudáveis, tais como carnes
enlatadas e biscoitos, ricos em gordura e sódio. Além desses produtos, aumentou
o acesso a carne seca, mortadela e bens de consumo duráveis, tipo aparelhos de
televisão e geradores elétricos.
Antes, os ribeirinhos dependiam
essencialmente da pesca e caça, além da produção local de farinha de mandioca.
Agora eles têm condições de comprar uma variedade maior de produtos no comércio
da cidade mais próxima, através do auxílio do Bolsa Família.
A professora constatou também que,
apesar de ter havido uma redução da ingestão energética total, houve ganho de
peso por parte das mães. Uma possível explicação seria a diminuição da
atividade física, em particular do trabalho na lavoura de mandioca. Antes da
introdução do Bolsa Família na região, em 2005, 100% dos lares cultivavam
mandioca. Em 2009, eram apenas 65%.
Essas mudanças geraram, segundo a
professora, dois efeitos. Um é o “efeito mortadela”, ou seja, a introdução de
alimentos industrializados na alimentação, tal como a mortadela. O outro é o
“efeito fim do mês”, momento em que começa a escassear a quantidade de comida
comprada na cidade no início do mês, quando o caboclo vai receber o benefício
do Bolsa Família.
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Professora Piperata apresenta resultados de sua pesquisa a comunidade do Caxiuanã. (Fonte: Universidade do Colorado) |
Outros fatos observados pela
professora parecem bastante evidentes, tal como a falta de atenção à saúde e à
educação. Isso se revela, por exemplo, na baixa estatura média dos indivíduos e
no baixo índice de massa muscular, resultantes da deficiência nutricional da
população. Essa deficiência nutricional resulta, por sua vez, da própria falta
de conhecimento da população quanto ao valor nutricional dos alimentos.
Reflexões
sobre o Resultado da Pesquisa
Minha primeira reação foi de
surpresa, quando li essa notícia da introdução da mortadela no cardápio de uma
população interiorana de Portel. Desde as minhas mais remotas lembranças a
mortadela é consumida pela população do interior. Da mesma forma que a carne em
conserva, por não exigir de refrigeração, a mortadela é uma das fontes de
proteína preferida pelo caboclo do interior, com a particularidade de que ele
prefere comê-la frita, principalmente acompanhando o açaí.
No entanto, aqui é preciso fazer uma
digressão sobre o atual ambiente político que vive país.
Para o leitor (e eleitor) das
grandes cidades, ‘mortadela’ se tornou um nome pejorativo para chamar as
pessoas que apoiam o Governo Federal, ou se beneficiam dos programas
assistenciais do governo. Essa expressão parece ter origem na notícia de que,
em agosto passado, o governo teria pagado lanche de pão com mortadela para quem
fosse à manifestação em seu favor. Daí que a notícia da introdução da mortadela
na alimentação dos beneficiários do Bolsa Família na Amazônia viesse perfeitamente
a calhar para aqueles que ridicularizam os programas assistenciais do Governo
Federal e aqueles que são beneficiados.
Todavia, intrigado quanto ao consumo
de mortadela pelos caboclos do Caxiuanã,
resolvi tirar algumas dúvidas. Dias desses, como tinha em casa uma visita que é
moradora do rio Anapu, resolvi perguntar a ela se o hábito de comer mortadela é
novo para as comunidades do Caxiuanã.
Ela me veio com uma resposta ainda
mais intrigante. Segundo ela, os moradores de Caxiuanã, sempre se confiaram na
abundância de carne de caça, como fonte de proteína animal, por isso não comiam
com frequência mortadela. Agora, a compra de mortadela na cidade seria um
resultado do empobrecimento da fauna na região da Floresta de Caxiuanã. Assim,
logo aquela que sempre foi uma das florestas mais ricas e intocadas de Portel,
estaria vendo na atualidade o empobrecimento da sua população animal, sobretudo
das espécies mais caçadas, tais como pacas, cutias, veados e tatus.
Outra conclusão que parece
equivocada do estudo é afirmar que o empobrecimento da dieta do ribeirinho
seria resultante do Bolsa Família, quando na realidade ela tem como causa a
falta de conhecimento e os próprios costumes e crenças da população. Essa falta
de conhecimento quanto ao valor nutricional dos alimentos é notória e se mostra
na aversão do povo em comer frutas e verduras, que tem a população de Portel,
que não vem de hoje.
A população nunca deu valor ao
consumo de frutas e verduras. Mesmo na zona urbana de Portel, sempre foi
abundante o número de árvores frutíferas, principalmente mangueiras, murucizeiros,
goabeiras e ameixeiras. No entanto, a população não cultivavava o costume de
tomar sucos de fruta natural, a não ser os sucos congelados, ou ‘chopes’ como
chamados pela população. Em vez disso, era generalizado o consumo de sucos
artificiais em pó, o Tang ou Ki-Suco, tão populares até os anos 1980, e
fabricados por multinacionais norte-americanas.
Também no interior o cultivo de
pomares e árvores frutíferas não era incentivado. Minha visita conta que quando
propôs ao pai plantar goiabeiras, recebeu a seguinte resposta: “as frutas
servem só pra atrair pipira (Cyanicterus
cyanicterus)”.
Também o consumo de verduras e
legumes sofria grande resistência por parte dos moradores. Lembro que quando pedia
salada durante as refeições, um amigo sempre respondia “quem gosta de comer
folha é jubuti e preguiça”.
Diferente era o comportamento quanto
aos frutos das palmeiras, tais como açaí, bacaba e pupunha. Mas as frutas nunca
foram vistas como boa fonte de alimento. Mesmo as mangas, tão abundantes na
cidade, jamais foram colocadas no mesmo status
que o açaí. Lembro que apesar de ter comido tanta manga em Portel, eu só
vim a descobrir como era gostoso o suco de manga na casa de uma missionária
alemã, que o servia durante as visitas. Da mesma forma procediam os americanos,
que moravam na Amacol, e estavam o tempo todo dando às suas crianças mamadeiras
com suco natural de frutas, fato esse que eu nunca vi por parte da população
local. Apesar da abundância de frutas.
No entanto, o jornalista se mostra
incapaz de saber analisar a natureza das mudanças constatadas pela pesquisadora
norte-americana.
Essa incapacidade advém da flagrante
falta de conhecimento do jornalista da Folha quanto aos hábitos dos moradores
da Região Amazônica. Em particular um dado deixa clara essa ignorância. O texto
afirma que os ribeirinhos viajam oito horas de Caxiuanã até a cidade mais
próxima, que seria Breves. Mas se tivesse pelo menos buscado ver onde se
localiza Caxiunã no mapa, teria visto que a cidade mais próxima é Portel, onde
fica a sede do município, e não Breves.
Enfim, as transformações no modo de
vida dos ribeirinhos no interior da Amazônia foram muitas nos últimos anos. Mas
o jornalista se deteve num só, que ele chamou de ‘Efeito Mortadela’, expressão
essa provavelmente não utilizada pela cientista em seu artigo, mas que serve ao
autor para menosprezar os beneficiários dos programas do Governo Federal.
Esse raciocínio enviesado, próprio
da imprensa conservadora, perde de vista algumas das transformações mais
profundas pelas quais passa o ribeirinho no interior da Amazônia após a
introdução do Bolsa Família.
Antes a vida do caboclo se regia pelos
ditames da natureza, tal como a época de colheita do açaí, da mandioca ou a
pesca do peixe. O ritmo de vida era ditado pela natureza. Mas hoje existe o
“efeito começo do mês”, como diz a pesquisadora. Os ribeirinhos têm data todo
início do mês para fazer viagem até a cidade mais próxima para comprar os
mantimentos necessários e, a partir de então, regrá-los até o início do próximo
mês. Ou seja, os caboclos assumem um ritmo de vida dos assalariados urbanos.
Existem outras transformações ainda
mais profundas por que passam as comunidades no interior da Amazônia causadas
pelo acesso aos programas do Governo Federal.
Desde o fim do Ciclo da Borracha, o
caboclo amazônida viveu relativamente isolado do capitalismo mundial. Não
produzindo nenhuma commodity de maior
valor no mercado nacional ou internacional, ele se recolheu a um modo de
extrativismo autônomo, em que a maior parte do que ele precisava para
sobreviver vinha diretamente da natureza, cultivando apenas a mandioca, a qual,
além do consumo próprio, servia como moeda de troca no escambo com os regatões.
Hoje o seu modo de vida está
mudando. Até a ida à cidade não se dá mais de canoa a remo, mas sim em uma
‘rabeta’ movida a motor a óleo diesel. Seja no óleo diesel ou na fonte de
proteína, os caboclos da Amazônia se encontram hoje cada vez mais dependentes
do consumo de produtos fabricados pelas grandes empresas nacionais e multinacionais.
Desta forma, acontece assim a
inserção do caboclo amazônida no capitalismo internacional (utilizando-se de
uma expressão dos teóricos marxistas), pelo incentivo ao consumo. Ironicamente,
aquele mesmo mercado que fecha suas portas aos seus produtos dos ribeirinhos, é
o mesmo que aceita esses ribeirinhos apenas na condição de consumidores. Mas
não na condição de produtores. O ribeirinho da Amazônia deve ser inserido no
mercado capitalista apenas em condição passiva, ou seja, no papel de consumidor
dos produtos dos grandes conglomerados industriais da Região Sudeste.
É esse o principal efeito do Bolsa
Família na Amazônia.