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Sr. Estanislau na estrada observa o terreno do seu sítio coberto pelo lixo jogado pela prefeitura. |
Em meados do século passado, uma leva de maranhenses migrou
para o interior de Portel. Eles teriam uma importância vital em um dos marcantes
empreendimentos da história da cidade.
Aqueles primeiros maranhenses eram de melhor situação social
ou econômica e acabaram abrindo caminho para a vinda de muitos outros. Entre
esses pioneiros estavam nomes como Benedito Carvalho, Waldemar Franco, Chico
Costa, Doda e Antônio Vieira (o seu Antônio Zomba como é mais conhecido), entre
outros. Muitos desses encontraram terras no interior, tal como o velho
Carvalho, que se estabeleceu inicialmente no Catispera, rio Pacajá.
Depois desses primeiros, houve uma verdadeira migração de
maranhenses para Portel. Estes últimos já não tinham a mesma origem social que
os primeiros. Eram de condição econômica bem menos favorável, e migraram para
Portel seguindo uma verdadeira epopeia. Eles vieram do Maranhão, como diziam
pejorativamente os portelenses da época, “por debaixo do fio”, seguindo o
caminho da ferrovia. Eles atravessaram a nado o rio Gurupi, que divide o estado
do Pará do vizinho Maranhão, nus carregando as trouxas nas costas. Já no Pará,
seguiram a pé o caminho dos trilhos da Estrada de Ferro Belém-Bragança para
chegar a Belém e depois continuar a viagem de barco até Portel.
Essa segunda leva de maranhenses já não encontrou terras no
interior, não seguiram o curso das águas, para o alto dos grandes rios. Em vez
disso, eles abriram caminho por terra, no que depois seria a estrada de Portel.
Foram aqueles maranhenses, que abriram picada na estrada que
ia da cidade até o quilômetro dez. Na verdade, a estrada de Portel, para ser
justo à história, deveria ser chamada de “estrada dos maranhenses”, em
lembrança àqueles primeiros imigrantes, que lá chegaram ainda na década de
1960. Como prova, até hoje ainda existe por lá a Vila dos Maranhenses. Ali, foram
os parentes do seu Antônio Zomba, em grande parte, que abriram caminho a
terçado da estrada até quase o quilômetro dez.
Na cidade, nem sempre essa segunda leva de maranhenses era
vista com bons olhos. Conta-se que o prefeito Ladislau Queiroz não gostava daqueles
audaciosos maranhenses que vieram “por debaixo do fio”. Mas, outros já viam o
aproveitamento daquela mão de obra recém-chegada como o uma boa oportunidade
para o futuro de Portel.
Assim, ali sentado por detrás do balcão de sua farmácia, o
comerciante Felizardo Diniz, ele próprio um pernambucano, discorria com amigos
e fregueses sobre suas preocupações com o futuro de Portel. “A cidade não podia
depender só da Amacol”, dizia ele. Na época, a multinacional exportadora de
laminados e compensados estava no auge do seu poderio, empregava diretamente
mais de mil pessoas no município, que construíram a cidade em volta da fábrica.
Parecia até um desatino falar que a cidade não poderia depender só da Amacol.
“O município tem que ter agricultura”, dizia o seu Felizardo.
Quando se elegeu prefeito, para o mandato de 1978 a 1982,
Felizardo Diniz cuidou de por em prática os seus planos. Ele idealizou e
implementou um grande projeto de assentamento agrícola, demarcando lotes de
duzentos e cinquenta metros de frente por mil metros de fundos (área de 25
hectares), que ele distribuiu aos agricultores portelenses, em verdade, grande
parte vindos do Maranhão. Felizardo Diniz abriu a estrada até o quilômetro dez,
e seguiu adiante, abrindo para o trânsito de veículos até o quilômetro quarenta
e sete. Esse era o verdadeiro início da estrada Portel-Tucuruí, um genuíno
sonho de saída do isolamento dos portelenses.
Quando criança, eu conheci toda a realidade daquela epopeia
nascida dos sonhos do prefeito Felizardo Diniz e dos braços dos maranhenses.
Era a coisa mais empolgante.
Até o quilômetro dez, a estrada era ladeada por uma
sequência de sítios, todos produtivos e muito bem cuidados.
A estrada em si antes começava no próprio campo de aviação
(hoje rua da Vivência), e não passava de um caminho ladeado na direita pelo
terreno da Amacol e na esquerda pela floresta de Pinho, que mais tarde daria
origem ao nome do bairro. Quase não havia casas nesse trecho. Mais adiante, a estrada propriamente dita
começava na oficina de caminhões da prefeitura, ao lado da qual havia uma vila
de casas, onde morava a família do Marajó, um vaqueiro que veio para Portel,
oriundo da grande ilha, para trabalhar com gado.
A partir dali, no lado esquerdo da estrada começava então o sítio
do meu avô Joaquim Monteiro, constituído de um terreno comprado do seu Luso dos
Santos havia muitos anos. Na primeira parte do terreno, junto à estrada, havia
um curral, onde durante anos meu pai, Estanislau Monteiro, criou gado. Logo em
seguida, havia uma casa de farinha completa, uma das mais bonitas casas de
farinha que eu já vi na vida. A casa do sítio em si era muito humilde, de
madeira enegrecida, sem pintura. Mais adiante havia a casa do Juscelino, um
irmão de criação do papai, que lá morou durante muitos anos com a família.
Juscelino na roça ali atrás por longo tempo plantou abacaxi e mandioca. Ao todo
o terreno ao todo tinha cerca de 800 metros de frente por um quilômetro de
fundura, chegando até quase o igarapé do Muim-Muim.
A viagem de caminhão pela estrada era uma aventura. Os mais
sortudos iam na boleia com o motorista, o saudoso seu Jiló, mas a meninada preferia ir na carroceria, equilibrando-se ao
vento sobre o caminhão em movimento. Era uma diversão desafiar o risco de cair
de cima do caminhão em alta velocidade, que ia parando ao longo do caminho para
pegar agricultores ou carregar algumas sacas. Mais gratificante ainda era ver
as propriedades. Aonde chegávamos éramos saudados por perus, galinhas e
marrecos. Criação havia bastante. Até hoje quando escuto o canto do anu-coroca
ou vejo uma árvore de embaúba me lembro daquelas paisagens.
Passando o sítio do meu pai, havia o sítio do seu Pedro
Japonês, com sua horta sempre muito bem mantida. Logo depois tinha o sítio do
seu João da Laury, como era conhecido o nicaraguense Juan Valle, casado com a
portelense dona Laury. O sítio dele era muito bonito, tinha uma casa muito bem
acabada e confortável, cheio de flores ao redor no quintal. Mais adiante havia
a fazenda do seu Anésio, um dos maiores produtores portelenses, rico no cultivo
de pimenta do reino. Essa fazenda ficava não muito longe do sítio do seu Leal,
que cultivava frutas e mantinha uma boa criação de galinhas.
Mais adiante, o sítio do padre, como era conhecido o Sítio
Emaús, contava com uma linda plantação de abacaxi, mantido por um projeto da
Igreja Católica do qual participavam os adolescentes dos grupos de jovens da igreja. Foi entre os garotos que
iam para o sítio do padre que aconteceu um dos poucos acidentes, de que eu tive
notícia, envolvendo alguém cair de caminhão. Foi, se eu não me engano, com o
Ajaks Gomes, que caiu e sofreu escoriações nos glúteos, sem muita gravidade,
mas de qualquer forma um grande susto, que lhe valeu muitas brincadeiras por
parte dos colegas durante um bom tempo.
Havia também a propriedade do seu Chico Anacã, na frente da
qual havia uma grande árvore de ingá, na qual subíamos para apanhar os frutos,
sempre trazendo muitas sacas de ingá, que vínhamos comendo durante a viagem.
Ali também se carregava no caminhão muitas sacas de feijão, arroz, milho e
farinha.
Quando se chegava ao quilômetro dez, onde havia um igarapé
muito gostoso, junto ao qual frequentemente parávamos para tomar banho, de
repente acabava a mata fechava e se deparava com um grande campo de vegetação
aberta, semelhante a uma savana, era o Campo de Natureza. Aquele campo de áreas
branquinhas, resquício pré-histórico de algum mar interior, era um dos piores
trechos da viagem. As rodas do caminhão simplesmente atolavam na área fofa.
Muitas vezes a viagem acabava ali mesmo.
Mas quando passávamos o Campo de Natureza, chegávamos então
finalmente ao ramal, onde se entrava novamente numa região de floresta fechada.
Ali, verdadeiramente, a natureza era inclemente. Novamente os caminhões
precisavam fazer um grande esforço para não atolar nos buracos e poças de lama.
Era incrível a dificuldade do percurso da estrada. Passávamos
quase uma manhã inteira para percorrer apenas 40 quilômetros! Muitas vezes
ficávamos pelo caminho, esperando reforço de um novo caminhão para rebocar o
atolado, para que pudéssemos seguir viagem.
Aquele era o último trecho transitável da estrada. Ali, no
ramal, em meio à floresta fechada, lá pelos quilômetros quarenta, havia um dos
últimos assentamentos agrícolas iniciados pelo prefeito Felizardo Diniz. Era
impressionante ver, em meio às agruras da natureza, os agricultores tentando
arrancar seu sustento da terra. E ali se colhia muito, cana de açúcar, milho,
feijão, mandioca, muita produção, que trazíamos no caminhão na viagem de volta
para a cidade.
Mas, infelizmente, todo aquele projeto de desenvolvimento
agrícola de Portel não foi além do mandato do próprio prefeito Felizardo Diniz.
Em 1982, após a eleição do prefeito Elquias Monteiro, a prioridade deixou de
ser o campo e a estrada, e passou a ser a cidade. Elquias começou uma reforma
urbana, trouxe o fórum para Portel, abriu a praia da Vila e construiu ali um
hospital, ginásio, associação de funcionários, museu, residência oficial do
prefeito, além do novo fórum do Tribunal de Justiça.
Os projetos de assentamento do prefeito Felizardo foram
abandonados. O transporte dos agricultores e da produção feito no caminhão da
prefeitura foi definitivamente encerrado. A agricultura deixou de ser
alternativa de desenvolvimento para o município.
Por volta de 2004, quase trinta anos depois de minhas
primeiras viagens até o ramal, voltei a percorrer a estrada até o quilômetro
dez.
A paisagem que se via agora ali era de abandono e desolação.
Dos sítios que antes ladeavam a estrada, só havia ainda o sítio do padre, mas
já sem a plantação de abacaxi. Do lado da estrada, só mato e nada de
agricultores, a juquira invadiu o terreno onde antes havia as plantações. Nem
mesmo o canto do anu-coroca se ouvia mais.
Os agricultores, deixados a pés depois que o prefeito
Elquias Monteiro cortou o transporte de caminhão, foram abandonando as
plantações, os que ficaram regrediram a um estágio de extrativismo e caça.
Ser agricultor em
Portel se tornou sinônimo de dureza, estar “na roça”, como dizia
pejorativamente o povo, se tornou sinônimo de estar numa pior.
Com o crescimento urbano, o sítio do papai, no início da
estrada, começou a ser ameaçado de invasão. Meu pai, prevendo o pior, começou a
dividir o terreno e a vender lotes, pois era impossível proteger toda a área do
terreno. Sabendo da importância da área para a expansão da cidade, o prefeito
Elquias, já em seu segundo mandato, entrou em negociação com o meu pai para
comprar o terreno, mas como o pagamento das parcelas não foi concluído pelo
prefeito, meu pai reteve parte do sítio onde ficava a casa do meu avô e do seu
Juscelino. A área onde antes ficava o curral foi entregue à prefeitura.
Porém, com o passar do tempo, os invasores começaram a
ameaçar de invadir o restante do terreno. Presenciei, em certa ocasião, cena
dramática de o meu pai enfrentar invasor armado com terçado na mão. Depois, a prefeitura
mesma começou a fazer pressão sobre a posse do terreno, mandando o próprio
caminhão da prefeitura jogar lixo no local, de modo a tentar caracterizar o
abandono da propriedade.
Em 2004, ano de eleições para
prefeito, foi a última pá de cal. Os invasores fizeram a investida final sobre
o restante da área do sítio, armados e munidos de material de construção
entregue por caminhões contratados por candidatos às eleições , estes sedentos
de votos dos miseráveis, eles rapidamente tomaram para si o restante da
propriedade. Naquele ano havia levado amigos agrônomos para iniciar um projeto
agrícola em Portel, a invasão violenta e premeditada pôs fim aos planos.
Hoje quase o bairro inteiro da Cidade Nova se localiza em
área antes pertencente ao sítio do meu avô. Posteriormente meu pai ganhou na
Justiça direito a indenização da prefeitura. A negociação do pagamento seria
feita no mandato do prefeito Pedro Barbosa, eleito em 2004. Não tenho detalhes
dessa negociação, uma vez que eu não estava próximo e que meu pai nutria muita
amizade com o Pedro, mas o preço pago pela prefeitura foi simbólico diante de
toda a extensão do terreno. Nunca pedimos reparações posteriores.
Este fato até hoje é utilizado por adversários anônimos para
me atingir ou tentar manchar a reputação do meu pai, alegando que meu pai teria
vendido o terreno mais de uma vez. Mas a indústria das invasões com motivações
políticas não faria só a nós de vítimas em Portel. Em 2008 (outro ano de
eleição) foi a vez da grande área da Amacol, a empresa multinacional que um dia
simbolizou todo o sonho de grandeza do município, ser violentamente invadida. A mensagem era clara: não deveria haver espaço para outro poder em Portel
que não o político.
Assim, com a Amacol fechada e seu terreno invadido, e os
agricultores abandonados na estrada à própria sorte, cumpriu-se o desígnio
sonhado pelos políticos: a prefeitura se tornou quase que a única fonte de
empregos no município. E quem quisesse ter um emprego, tinha que pedir aos
políticos.
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Este texto foi pensado inicialmente para ser uma trilogia junto com dois outros:
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Este texto foi pensado inicialmente para ser uma trilogia junto com dois outros:
- Prefeito Paulo Ferreira: um Ano de Muitos Acertos e Novos Rumos;
- Companhia Amacol: Mitos e Ilusões da População de Portel.