sábado, 16 de abril de 2016

ESTRADA DE PORTEL: APOGEU E ABANDONO

Sr. Estanislau na estrada observa o terreno do seu sítio coberto pelo lixo jogado pela prefeitura.

Em meados do século passado, uma leva de maranhenses migrou para o interior de Portel. Eles teriam uma importância vital em um dos marcantes empreendimentos da história da cidade.

Aqueles primeiros maranhenses eram de melhor situação social ou econômica e acabaram abrindo caminho para a vinda de muitos outros. Entre esses pioneiros estavam nomes como Benedito Carvalho, Waldemar Franco, Chico Costa, Doda e Antônio Vieira (o seu Antônio Zomba como é mais conhecido), entre outros. Muitos desses encontraram terras no interior, tal como o velho Carvalho, que se estabeleceu inicialmente no Catispera, rio Pacajá.

Depois desses primeiros, houve uma verdadeira migração de maranhenses para Portel. Estes últimos já não tinham a mesma origem social que os primeiros. Eram de condição econômica bem menos favorável, e migraram para Portel seguindo uma verdadeira epopeia. Eles vieram do Maranhão, como diziam pejorativamente os portelenses da época, “por debaixo do fio”, seguindo o caminho da ferrovia. Eles atravessaram a nado o rio Gurupi, que divide o estado do Pará do vizinho Maranhão, nus carregando as trouxas nas costas. Já no Pará, seguiram a pé o caminho dos trilhos da Estrada de Ferro Belém-Bragança para chegar a Belém e depois continuar a viagem de barco até Portel.
Essa segunda leva de maranhenses já não encontrou terras no interior, não seguiram o curso das águas, para o alto dos grandes rios. Em vez disso, eles abriram caminho por terra, no que depois seria a estrada de Portel.

Foram aqueles maranhenses, que abriram picada na estrada que ia da cidade até o quilômetro dez. Na verdade, a estrada de Portel, para ser justo à história, deveria ser chamada de “estrada dos maranhenses”, em lembrança àqueles primeiros imigrantes, que lá chegaram ainda na década de 1960. Como prova, até hoje ainda existe por lá a Vila dos Maranhenses. Ali, foram os parentes do seu Antônio Zomba, em grande parte, que abriram caminho a terçado da estrada até quase o quilômetro dez.

Na cidade, nem sempre essa segunda leva de maranhenses era vista com bons olhos. Conta-se que o prefeito Ladislau Queiroz não gostava daqueles audaciosos maranhenses que vieram “por debaixo do fio”. Mas, outros já viam o aproveitamento daquela mão de obra recém-chegada como o uma boa oportunidade para o futuro de Portel.

Assim, ali sentado por detrás do balcão de sua farmácia, o comerciante Felizardo Diniz, ele próprio um pernambucano, discorria com amigos e fregueses sobre suas preocupações com o futuro de Portel. “A cidade não podia depender só da Amacol”, dizia ele. Na época, a multinacional exportadora de laminados e compensados estava no auge do seu poderio, empregava diretamente mais de mil pessoas no município, que construíram a cidade em volta da fábrica. Parecia até um desatino falar que a cidade não poderia depender só da Amacol. “O município tem que ter agricultura”, dizia o seu Felizardo.

Quando se elegeu prefeito, para o mandato de 1978 a 1982, Felizardo Diniz cuidou de por em prática os seus planos. Ele idealizou e implementou um grande projeto de assentamento agrícola, demarcando lotes de duzentos e cinquenta metros de frente por mil metros de fundos (área de 25 hectares), que ele distribuiu aos agricultores portelenses, em verdade, grande parte vindos do Maranhão. Felizardo Diniz abriu a estrada até o quilômetro dez, e seguiu adiante, abrindo para o trânsito de veículos até o quilômetro quarenta e sete. Esse era o verdadeiro início da estrada Portel-Tucuruí, um genuíno sonho de saída do isolamento dos portelenses.

Quando criança, eu conheci toda a realidade daquela epopeia nascida dos sonhos do prefeito Felizardo Diniz e dos braços dos maranhenses. Era a coisa mais empolgante.
Até o quilômetro dez, a estrada era ladeada por uma sequência de sítios, todos produtivos e muito bem cuidados.

A estrada em si antes começava no próprio campo de aviação (hoje rua da Vivência), e não passava de um caminho ladeado na direita pelo terreno da Amacol e na esquerda pela floresta de Pinho, que mais tarde daria origem ao nome do bairro. Quase não havia casas nesse trecho.  Mais adiante, a estrada propriamente dita começava na oficina de caminhões da prefeitura, ao lado da qual havia uma vila de casas, onde morava a família do Marajó, um vaqueiro que veio para Portel, oriundo da grande ilha, para trabalhar com gado.

A partir dali, no lado esquerdo da estrada começava então o sítio do meu avô Joaquim Monteiro, constituído de um terreno comprado do seu Luso dos Santos havia muitos anos. Na primeira parte do terreno, junto à estrada, havia um curral, onde durante anos meu pai, Estanislau Monteiro, criou gado. Logo em seguida, havia uma casa de farinha completa, uma das mais bonitas casas de farinha que eu já vi na vida. A casa do sítio em si era muito humilde, de madeira enegrecida, sem pintura. Mais adiante havia a casa do Juscelino, um irmão de criação do papai, que lá morou durante muitos anos com a família. Juscelino na roça ali atrás por longo tempo plantou abacaxi e mandioca. Ao todo o terreno ao todo tinha cerca de 800 metros de frente por um quilômetro de fundura, chegando até quase o igarapé do Muim-Muim.

A viagem de caminhão pela estrada era uma aventura. Os mais sortudos iam na boleia com o motorista, o saudoso seu Jiló, mas a meninada  preferia ir na carroceria, equilibrando-se ao vento sobre o caminhão em movimento. Era uma diversão desafiar o risco de cair de cima do caminhão em alta velocidade, que ia parando ao longo do caminho para pegar agricultores ou carregar algumas sacas. Mais gratificante ainda era ver as propriedades. Aonde chegávamos éramos saudados por perus, galinhas e marrecos. Criação havia bastante. Até hoje quando escuto o canto do anu-coroca ou vejo uma árvore de embaúba me lembro daquelas paisagens.

Passando o sítio do meu pai, havia o sítio do seu Pedro Japonês, com sua horta sempre muito bem mantida. Logo depois tinha o sítio do seu João da Laury, como era conhecido o nicaraguense Juan Valle, casado com a portelense dona Laury. O sítio dele era muito bonito, tinha uma casa muito bem acabada e confortável, cheio de flores ao redor no quintal. Mais adiante havia a fazenda do seu Anésio, um dos maiores produtores portelenses, rico no cultivo de pimenta do reino. Essa fazenda ficava não muito longe do sítio do seu Leal, que cultivava frutas e mantinha uma boa criação de galinhas.

Mais adiante, o sítio do padre, como era conhecido o Sítio Emaús, contava com uma linda plantação de abacaxi, mantido por um projeto da Igreja Católica do qual participavam os adolescentes dos grupos  de jovens da igreja. Foi entre os garotos que iam para o sítio do padre que aconteceu um dos poucos acidentes, de que eu tive notícia, envolvendo alguém cair de caminhão. Foi, se eu não me engano, com o Ajaks Gomes, que caiu e sofreu escoriações nos glúteos, sem muita gravidade, mas de qualquer forma um grande susto, que lhe valeu muitas brincadeiras por parte dos colegas durante um bom tempo.

Havia também a propriedade do seu Chico Anacã, na frente da qual havia uma grande árvore de ingá, na qual subíamos para apanhar os frutos, sempre trazendo muitas sacas de ingá, que vínhamos comendo durante a viagem. Ali também se carregava no caminhão muitas sacas de feijão, arroz, milho e farinha.

Quando se chegava ao quilômetro dez, onde havia um igarapé muito gostoso, junto ao qual frequentemente parávamos para tomar banho, de repente acabava a mata fechava e se deparava com um grande campo de vegetação aberta, semelhante a uma savana, era o Campo de Natureza. Aquele campo de áreas branquinhas, resquício pré-histórico de algum mar interior, era um dos piores trechos da viagem. As rodas do caminhão simplesmente atolavam na área fofa. Muitas vezes a viagem acabava ali mesmo.

Mas quando passávamos o Campo de Natureza, chegávamos então finalmente ao ramal, onde se entrava novamente numa região de floresta fechada. Ali, verdadeiramente, a natureza era inclemente. Novamente os caminhões precisavam fazer um grande esforço para não atolar nos buracos e poças de lama.

Era incrível a dificuldade do percurso da estrada. Passávamos quase uma manhã inteira para percorrer apenas 40 quilômetros! Muitas vezes ficávamos pelo caminho, esperando reforço de um novo caminhão para rebocar o atolado, para que pudéssemos seguir viagem.

Aquele era o último trecho transitável da estrada. Ali, no ramal, em meio à floresta fechada, lá pelos quilômetros quarenta, havia um dos últimos assentamentos agrícolas iniciados pelo prefeito Felizardo Diniz. Era impressionante ver, em meio às agruras da natureza, os agricultores tentando arrancar seu sustento da terra. E ali se colhia muito, cana de açúcar, milho, feijão, mandioca, muita produção, que trazíamos no caminhão na viagem de volta para a cidade.

Mas, infelizmente, todo aquele projeto de desenvolvimento agrícola de Portel não foi além do mandato do próprio prefeito Felizardo Diniz. Em 1982, após a eleição do prefeito Elquias Monteiro, a prioridade deixou de ser o campo e a estrada, e passou a ser a cidade. Elquias começou uma reforma urbana, trouxe o fórum para Portel, abriu a praia da Vila e construiu ali um hospital, ginásio, associação de funcionários, museu, residência oficial do prefeito, além do novo fórum do Tribunal de Justiça.

Os projetos de assentamento do prefeito Felizardo foram abandonados. O transporte dos agricultores e da produção feito no caminhão da prefeitura foi definitivamente encerrado. A agricultura deixou de ser alternativa de desenvolvimento para o município.

Por volta de 2004, quase trinta anos depois de minhas primeiras viagens até o ramal, voltei a percorrer a estrada até o quilômetro dez.

A paisagem que se via agora ali era de abandono e desolação. Dos sítios que antes ladeavam a estrada, só havia ainda o sítio do padre, mas já sem a plantação de abacaxi. Do lado da estrada, só mato e nada de agricultores, a juquira invadiu o terreno onde antes havia as plantações. Nem mesmo o canto do anu-coroca se ouvia mais.

Os agricultores, deixados a pés depois que o prefeito Elquias Monteiro cortou o transporte de caminhão, foram abandonando as plantações, os que ficaram regrediram a um estágio de extrativismo e caça.

Ser agricultor em Portel se tornou sinônimo de dureza, estar “na roça”, como dizia pejorativamente o povo, se tornou sinônimo de estar numa pior.

Com o crescimento urbano, o sítio do papai, no início da estrada, começou a ser ameaçado de invasão. Meu pai, prevendo o pior, começou a dividir o terreno e a vender lotes, pois era impossível proteger toda a área do terreno. Sabendo da importância da área para a expansão da cidade, o prefeito Elquias, já em seu segundo mandato, entrou em negociação com o meu pai para comprar o terreno, mas como o pagamento das parcelas não foi concluído pelo prefeito, meu pai reteve parte do sítio onde ficava a casa do meu avô e do seu Juscelino. A área onde antes ficava o curral foi entregue à prefeitura.

Porém, com o passar do tempo, os invasores começaram a ameaçar de invadir o restante do terreno. Presenciei, em certa ocasião, cena dramática de o meu pai enfrentar invasor armado com terçado na mão. Depois, a prefeitura mesma começou a fazer pressão sobre a posse do terreno, mandando o próprio caminhão da prefeitura jogar lixo no local, de modo a tentar caracterizar o abandono da propriedade.

Em 2004, ano de eleições para prefeito, foi a última pá de cal. Os invasores fizeram a investida final sobre o restante da área do sítio, armados e munidos de material de construção entregue por caminhões contratados por candidatos às eleições , estes sedentos de votos dos miseráveis, eles rapidamente tomaram para si o restante da propriedade. Naquele ano havia levado amigos agrônomos para iniciar um projeto agrícola em Portel, a invasão violenta e premeditada pôs fim aos planos.

Hoje quase o bairro inteiro da Cidade Nova se localiza em área antes pertencente ao sítio do meu avô. Posteriormente meu pai ganhou na Justiça direito a indenização da prefeitura. A negociação do pagamento seria feita no mandato do prefeito Pedro Barbosa, eleito em 2004. Não tenho detalhes dessa negociação, uma vez que eu não estava próximo e que meu pai nutria muita amizade com o Pedro, mas o preço pago pela prefeitura foi simbólico diante de toda a extensão do terreno. Nunca pedimos reparações posteriores.

Este fato até hoje é utilizado por adversários anônimos para me atingir ou tentar manchar a reputação do meu pai, alegando que meu pai teria vendido o terreno mais de uma vez. Mas a indústria das invasões com motivações políticas não faria só a nós de vítimas em Portel. Em 2008 (outro ano de eleição) foi a vez da grande área da Amacol, a empresa multinacional que um dia simbolizou todo o sonho de grandeza do município, ser violentamente invadida. A mensagem era clara: não deveria haver espaço para outro poder em Portel que não o político.


Assim, com a Amacol fechada e seu terreno invadido, e os agricultores abandonados na estrada à própria sorte, cumpriu-se o desígnio sonhado pelos políticos: a prefeitura se tornou quase que a única fonte de empregos no município. E quem quisesse ter um emprego, tinha que pedir aos políticos.
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Este texto foi pensado inicialmente para ser uma trilogia junto com dois outros:

O objetivo era mostrar o passado e as novas possibilidades de desenvolvimento para o município. Esses artigos deveriam ser lidos em conjunto.