![]() |
Tartaruga marinha verde, semelhante a que encontrei na praia de Salvaterra. (Foto: Projeto Tamar) |
Dia desses minha namorada lembrou que mês que vem de
setembro começam as tartarugas a se reproduzir nas praias de Melgaço...
Eu nem tinha conhecimento que as grandes tartarugas da
Amazônia se reproduziam nas praias de
Melgaço. E, se elas se reproduzem em
Melgaço... devem se reproduzir nas praias de areia branca de Portel também... E
logo me veio à cabeça aquele espetáculo de centenas, milhares de pequenas
tartarugas correndo na areia, procurando as águas do rio. Nunca tinha ouvido
falar desse espetáculo da natureza em Portel. Mas esse espetáculo ocorria, e
não faz tanto tempo atrás...
Lembrei-me de um episódio que aconteceu comigo quando estava
na Pousada dos Guarás, localizada à beira da Praia Grande, em Salvaterra, no
Marajó. Eu trabalhava no turismo receptivo da pousada em Belém, e estava em
Salvaterra para acompanhar algum serviço por lá. Era uma noite de sábado
monótona e eu trocava conversa com o gerente Zé Luís na recepção, aguardando a
troca de turno do recepcionista da noite, que estava atrasado para o trabalho.
De repente veio um empregado da pousada à recepção, cansado, quase afônico,
falando que o recepcionista havia encontrado algo incrível quando vinha pela
praia e precisava de ajuda, pediu então para levarmos um carro de mão. Eu segui
andando pela areia, esperando encontrar algo fantástico, uma cobra grande, uma
sereia, um extraterrestre... Quando cheguei, o recepcionista havia encontrado
uma tartaruga marinha na areia.
A tartaruga marinha era enorme. Nunca havia visto
pessoalmente um animal daqueles. Ela tinha a cabeça cônica e pontuda, típica da
espécie, era toda esverdeada na cabeça e no casco, de um verde marinho vivo, e
nas partes de baixo, pescoço e nadadeira, ela era branca. Essa espécie chega a
medir quase um metro e meio de comprimento da carapaça e pesar até 170 quilos.
Eram essas mais ou menos a medida daquela que via ali na minha frente.
Colocamos nós três com muito o esforço o animal no carrinho
de mão e levamos até a pousada. Os rapazes não se calavam de tanta empolgação.
Quantos anos um animal daqueles não era visto por ali! Haviam ouvido apenas os
antigos falarem dele na região. Imagina quando mostrassem aos outros! E que
gostoso não ficaria um animal daqueles na panela! Dava uma sopa enorme!
Na falta de um local melhor, deixamos o animal na recepção
mesmo, observado pelo recepcionista de plantão. Eu fui para o meu quarto me
deitar. Mas do quarto, ouvia a tartaruga se debater na recepção, tentando
encontrar um caminho para a água. Comecei a pensar como era raro encontrar uma
tartaruga marinha no Marajó, quantos milhares de quilômetros aquele animal não
havia nadado, se livrado de redes e predadores para tentar botar seus ovos ali
na Praia Grande, até ser pego pelo predador homem. E lá eu ouvia a tartaruga se
debatendo no chão da recepção. Seu pescoço arfando lembrava o pescoço de um ser
humano branco e gordo, cansado e com dificuldade de respirar. Não consegui
dormir. Decidi que era hora de salvar aquele animal.
Cheguei com o recepcionista e dei a ordem: “Edmilson, me
ajuda a colocar a tartaruga no carrinho de mão que nós vamos soltar esse
animal!”. “Mas como!” respondeu ele. “O que vai falar o pessoal amanhã de manhã?!”.
Eu expliquei melhor a ele: “olha, esse é um animal protegido pela legislação.
Amanhã um dos hóspedes vê essa tartaruga em cativeiro aqui, ou pior, vê que nós
matamos uma espécie rara, ele vai denunciar no IBAMA (órgão de proteção
ambiental) e nós vamos responder por um crime. E ainda vamos aparecer na
televisão como uma pousada, que se diz ecológica, mas que mata animal ameaçado
de extinção”. Ele me ouviu contrariado, mas admitiu a contragosto “é...”. Carregamos o animal no carrinho de mão até a
areia onde o soltamos. Observei como a tartaruga quase não tinha forças para
entrar na água, até que foi devagar e desapareceu em meio às ondas. Voltei pra
pousada pensando “a coitada foi embora e nem sequer conseguiu botar os
ovos...”.
No mesmo dia, ainda nem havia levantado o sol, fui acordado
em meu quarto com uma batida insistente na porta: “onde estava a tartaruga?!”.
E lá fui eu mais uma vez explicar a situação, não podíamos matar um animal
daqueles na pousada. A revolta foi geral, me livrei por pouco de ser linchado
pelos colegas de trabalho, não fosse eu, de certa forma, um superior
hierárquico a eles. O gerente do restaurante dizia: “como eu podia fazer isso?
um animal daqueles ia dar para servir vários dias no restaurante!”. Outro ainda
dizia cinicamente que o objetivo não era matar, mas sim amarrar o animal a um
fio e soltar na lagoa, para mostrar para os turistas. Como pode um animal
marinho viver em uma lagoa de água doce? Quanta ignorância, a maioria não
negava que o objetivo verdadeiro era matar e comer o animal. Não importava quão
raro ele fosse. O prazer mesmo era exterminar um animal raro. Fiquei
impressionado com tamanha voracidade.
Lembrei desse fato quando ouvi que as tartarugas da Amazônia
estavam para começar a postura de ovos nas praias de Melgaço. A maioria delas
não escapará da panela. Houve uma época, não tanto tempo atrás, em que as
tartarugas marinhas procuravam as praias do Marajó para por os seus ovos,
provavelmente também nas praias de Mosqueiro, Outeiro, entrando pelo rio Pará.
Hoje ninguém mais ouviu falar dessas tartarugas marinhas. Da mesma forma, há
algumas décadas atrás as tartarugas da Amazônia ainda procuravam as areias da
praia do Arucará para por seus ovos. A postura de ovos pelas tartarugas é uma
festa da natureza, as milhares de tartaruguinhas quando nascem oferecem um
banquete para diversas espécies de aves, jacarés, e outros animais. Proteger as
tartarugas é garantir a sobrevivência de inúmeras outras espécies. Hoje a população nem ouviu falar de tartarugas
nas praias do Arucará. Imaginei se alguma, seguindo seus instintos, chegasse
até a praia, como não demoraria nada a surgir o predador homem para pegá-la,
matá-la e levá-la à panela.
As pessoas na Amazônia matam os animais não só por
necessidade de alimentação, matam também por um prazer primitivo, irracional de
devorar um animal de caça, quando não pelo próprio prazer de matar. Ato esse
que vem, não do índio, que tira da natureza apenas aquilo que precisa para sua
alimentação, mas sim dos nossos antepassados nordestinos, que chegaram à Amazônia desde meados do século XIX para
extrair borracha. Era um desespero de quem saiu de uma região seca e se
encontrou então em um novo meio, rico em fauna, e sentiu prazer em matar só pra
provar o novo alimento. Podendo ter vindo igualmente do colono português, em
sua ânsia voraz de dominar a natureza selvagem.
Meu avô, que era nordestino e veio do estado do Rio Grande
do Norte, contava que certa vez no interior, estava um bando de dezenas de capivaras
a atravessar o rio Pacajá. Seus vizinhos não se satisfizeram até matar todas,
todas. Muito mais do que precisavam para matar a fome. Hoje as capivaras já há
muito desapareceram dos rios de Portel, juntamente com as antas e outros
animais de grande porte. Mesmo destino que tiveram as tartarugas da praia do
Arucará.
![]() |
Tartarugas da Amazônia pondo ovos em praia na reserva de Abufari, estado do Amazonas. (Foto: www.blogdotiao.com) |
Hoje em dia, em muitas áreas de Portel, esta dizimação da
fauna já chega um a ponto crítico. Em muitas localidades a população já começoua substituir a alimentação tradicional por alimento industrializado. É hora de
rever essa relação com a natureza. É mais do que hora de sair de uma relação
puramente predatória para uma relação de respeito. O domínio da natureza deve
ser feito não pela depredação, mas sim pelo conhecimento. É grande o potencial
de geração de renda pelo manejo de população de animais selvagens. Em vez de
matar, deveríamos manejar. Que tal se, em vez de ficarmos na cidade, saíssemos
para o interior para conhecer os hábitos de reprodução das cutias, seus
habitats, que tal catalogarmos as populações de macacos guaribas, conhecermos
seus comportamentos? E fazer isso não só de curiosidade, mas registrar essas
informações e dados?
A melhor forma de se apropriar de uma região é conhecer
sobre ela. Se os portelenses quiserem tomar conta do seu município, vão ter que
produzir conhecimento sobre sua terra. Só aprende a valorizar quem conhece. A
criação e reprodução de animais selvagens em cativeiro ou em áreas monitoradas
pode gerar renda através da culinária, com o prato típico do jabuti na
castanha, desta vez criado em cativeiro, por exemplo. Pode também gerar renda
através do turismo ecológico, turistas pagam uma grana para ver capivara e
jacaré em fazendas do Marajó, poderiam também pagar para vê-los em Portel.
Tanta gente em Portel reclamando da falta de oportunidades,
por que não começam projetos para registrar e manejar a fauna?
Quando se faz essa pergunta a um portelense logo vem a
resposta pronta: “aqui não dá certo”. Portel
é a cidade em que todo mundo sabe
que nada dá certo, muito embora ninguém tenha sequer uma vez tentado. Se
pensassem da mesma maneira na Bahia, o projeto Tamar nunca teria dado certo.
Essa relação sustentável e amigável com a fauna poderia se
expandir para outras áreas, para a agricultura, para a geração de alimento,
para a piscicultura. Poderíamos tirar o município da miséria e ainda servir de
exemplo. Tudo depende de iniciativa.
Mês que vem as tartarugas procuram as praias para botar seus
ovos, por que não começamos a proteger as tartarugas?