segunda-feira, 21 de agosto de 2017

POR QUE NÃO COMEÇAMOS PELAS TARTARUGAS?


Tartaruga marinha verde, semelhante a que encontrei na praia de Salvaterra. (Foto: Projeto Tamar)

Dia desses minha namorada lembrou que mês que vem de setembro começam as tartarugas a se reproduzir nas praias de Melgaço...

Eu nem tinha conhecimento que as grandes tartarugas da Amazônia se reproduziam nas praias de 
Melgaço. E, se elas se reproduzem em Melgaço... devem se reproduzir nas praias de areia branca de Portel também... E logo me veio à cabeça aquele espetáculo de centenas, milhares de pequenas tartarugas correndo na areia, procurando as águas do rio. Nunca tinha ouvido falar desse espetáculo da natureza em Portel. Mas esse espetáculo ocorria, e não faz tanto tempo atrás...

Lembrei-me de um episódio que aconteceu comigo quando estava na Pousada dos Guarás, localizada à beira da Praia Grande, em Salvaterra, no Marajó. Eu trabalhava no turismo receptivo da pousada em Belém, e estava em Salvaterra para acompanhar algum serviço por lá. Era uma noite de sábado monótona e eu trocava conversa com o gerente Zé Luís na recepção, aguardando a troca de turno do recepcionista da noite, que estava atrasado para o trabalho. De repente veio um empregado da pousada à recepção, cansado, quase afônico, falando que o recepcionista havia encontrado algo incrível quando vinha pela praia e precisava de ajuda, pediu então para levarmos um carro de mão. Eu segui andando pela areia, esperando encontrar algo fantástico, uma cobra grande, uma sereia, um extraterrestre... Quando cheguei, o recepcionista havia encontrado uma tartaruga marinha na areia.
A tartaruga marinha era enorme. Nunca havia visto pessoalmente um animal daqueles. Ela tinha a cabeça cônica e pontuda, típica da espécie, era toda esverdeada na cabeça e no casco, de um verde marinho vivo, e nas partes de baixo, pescoço e nadadeira, ela era branca. Essa espécie chega a medir quase um metro e meio de comprimento da carapaça e pesar até 170 quilos. Eram essas mais ou menos a medida daquela que via ali na minha frente.

Colocamos nós três com muito o esforço o animal no carrinho de mão e levamos até a pousada. Os rapazes não se calavam de tanta empolgação. Quantos anos um animal daqueles não era visto por ali! Haviam ouvido apenas os antigos falarem dele na região. Imagina quando mostrassem aos outros! E que gostoso não ficaria um animal daqueles na panela! Dava uma sopa enorme!

Na falta de um local melhor, deixamos o animal na recepção mesmo, observado pelo recepcionista de plantão. Eu fui para o meu quarto me deitar. Mas do quarto, ouvia a tartaruga se debater na recepção, tentando encontrar um caminho para a água. Comecei a pensar como era raro encontrar uma tartaruga marinha no Marajó, quantos milhares de quilômetros aquele animal não havia nadado, se livrado de redes e predadores para tentar botar seus ovos ali na Praia Grande, até ser pego pelo predador homem. E lá eu ouvia a tartaruga se debatendo no chão da recepção. Seu pescoço arfando lembrava o pescoço de um ser humano branco e gordo, cansado e com dificuldade de respirar. Não consegui dormir. Decidi que era hora de salvar aquele animal.

Cheguei com o recepcionista e dei a ordem: “Edmilson, me ajuda a colocar a tartaruga no carrinho de mão que nós vamos soltar esse animal!”. “Mas como!” respondeu ele. “O que vai falar o pessoal amanhã de manhã?!”. Eu expliquei melhor a ele: “olha, esse é um animal protegido pela legislação. Amanhã um dos hóspedes vê essa tartaruga em cativeiro aqui, ou pior, vê que nós matamos uma espécie rara, ele vai denunciar no IBAMA (órgão de proteção ambiental) e nós vamos responder por um crime. E ainda vamos aparecer na televisão como uma pousada, que se diz ecológica, mas que mata animal ameaçado de extinção”. Ele me ouviu contrariado, mas admitiu a contragosto “é...”.  Carregamos o animal no carrinho de mão até a areia onde o soltamos. Observei como a tartaruga quase não tinha forças para entrar na água, até que foi devagar e desapareceu em meio às ondas. Voltei pra pousada pensando “a coitada foi embora e nem sequer conseguiu botar os ovos...”.

No mesmo dia, ainda nem havia levantado o sol, fui acordado em meu quarto com uma batida insistente na porta: “onde estava a tartaruga?!”. E lá fui eu mais uma vez explicar a situação, não podíamos matar um animal daqueles na pousada. A revolta foi geral, me livrei por pouco de ser linchado pelos colegas de trabalho, não fosse eu, de certa forma, um superior hierárquico a eles. O gerente do restaurante dizia: “como eu podia fazer isso? um animal daqueles ia dar para servir vários dias no restaurante!”. Outro ainda dizia cinicamente que o objetivo não era matar, mas sim amarrar o animal a um fio e soltar na lagoa, para mostrar para os turistas. Como pode um animal marinho viver em uma lagoa de água doce? Quanta ignorância, a maioria não negava que o objetivo verdadeiro era matar e comer o animal. Não importava quão raro ele fosse. O prazer mesmo era exterminar um animal raro. Fiquei impressionado com tamanha voracidade.

Lembrei desse fato quando ouvi que as tartarugas da Amazônia estavam para começar a postura de ovos nas praias de Melgaço. A maioria delas não escapará da panela. Houve uma época, não tanto tempo atrás, em que as tartarugas marinhas procuravam as praias do Marajó para por os seus ovos, provavelmente também nas praias de Mosqueiro, Outeiro, entrando pelo rio Pará. Hoje ninguém mais ouviu falar dessas tartarugas marinhas. Da mesma forma, há algumas décadas atrás as tartarugas da Amazônia ainda procuravam as areias da praia do Arucará para por seus ovos. A postura de ovos pelas tartarugas é uma festa da natureza, as milhares de tartaruguinhas quando nascem oferecem um banquete para diversas espécies de aves, jacarés, e outros animais. Proteger as tartarugas é garantir a sobrevivência de inúmeras outras espécies.  Hoje a população nem ouviu falar de tartarugas nas praias do Arucará. Imaginei se alguma, seguindo seus instintos, chegasse até a praia, como não demoraria nada a surgir o predador homem para pegá-la, matá-la e levá-la à panela.

As pessoas na Amazônia matam os animais não só por necessidade de alimentação, matam também por um prazer primitivo, irracional de devorar um animal de caça, quando não pelo próprio prazer de matar. Ato esse que vem, não do índio, que tira da natureza apenas aquilo que precisa para sua alimentação, mas sim dos nossos antepassados nordestinos, que chegaram  à Amazônia desde meados do século XIX para extrair borracha. Era um desespero de quem saiu de uma região seca e se encontrou então em um novo meio, rico em fauna, e sentiu prazer em matar só pra provar o novo alimento. Podendo ter vindo igualmente do colono português, em sua ânsia voraz de dominar a natureza selvagem.

Meu avô, que era nordestino e veio do estado do Rio Grande do Norte, contava que certa vez no interior, estava um bando de dezenas de capivaras a atravessar o rio Pacajá. Seus vizinhos não se satisfizeram até matar todas, todas. Muito mais do que precisavam para matar a fome. Hoje as capivaras já há muito desapareceram dos rios de Portel, juntamente com as antas e outros animais de grande porte. Mesmo destino que tiveram as tartarugas da praia do Arucará.

Tartarugas da Amazônia pondo ovos em praia na reserva de Abufari, estado do Amazonas. (Foto: www.blogdotiao.com)


Hoje em dia, em muitas áreas de Portel, esta dizimação da fauna já chega um a ponto crítico. Em muitas localidades a população já começoua substituir a alimentação tradicional por alimento industrializado. É hora de rever essa relação com a natureza. É mais do que hora de sair de uma relação puramente predatória para uma relação de respeito. O domínio da natureza deve ser feito não pela depredação, mas sim pelo conhecimento. É grande o potencial de geração de renda pelo manejo de população de animais selvagens. Em vez de matar, deveríamos manejar. Que tal se, em vez de ficarmos na cidade, saíssemos para o interior para conhecer os hábitos de reprodução das cutias, seus habitats, que tal catalogarmos as populações de macacos guaribas, conhecermos seus comportamentos? E fazer isso não só de curiosidade, mas registrar essas informações e dados?

A melhor forma de se apropriar de uma região é conhecer sobre ela. Se os portelenses quiserem tomar conta do seu município, vão ter que produzir conhecimento sobre sua terra. Só aprende a valorizar quem conhece. A criação e reprodução de animais selvagens em cativeiro ou em áreas monitoradas pode gerar renda através da culinária, com o prato típico do jabuti na castanha, desta vez criado em cativeiro, por exemplo. Pode também gerar renda através do turismo ecológico, turistas pagam uma grana para ver capivara e jacaré em fazendas do Marajó, poderiam também pagar para vê-los em Portel.

Tanta gente em Portel reclamando da falta de oportunidades, por que não começam projetos para registrar e manejar a fauna?

Quando se faz essa pergunta a um portelense logo vem a resposta pronta: “aqui não dá certo”. Portel 
é a cidade em que todo mundo sabe que nada dá certo, muito embora ninguém tenha sequer uma vez tentado. Se pensassem da mesma maneira na Bahia, o projeto Tamar nunca teria dado certo.
Essa relação sustentável e amigável com a fauna poderia se expandir para outras áreas, para a agricultura, para a geração de alimento, para a piscicultura. Poderíamos tirar o município da miséria e ainda servir de exemplo. Tudo depende de iniciativa.


Mês que vem as tartarugas procuram as praias para botar seus ovos, por que não começamos a proteger as tartarugas?

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

O BAILE DA MUSA VERÃO 2017

Gerusa Balieiro desfila para os jurados

Neste último sábado, dia 29 de julho, a prefeitura realizou a 29ª edição do tradicional Baile da Musa Verão.  A cidade padece com os atrasos frequentes no pagamento dos salários do funcionalismo público, e com o atendimento pela agência do Banco do Brasil, a principal das duas únicas agências de banco num município, onde o acesso da internet é restrito e precário. Não basta a prefeitura atrasar os salários, quando paga, muitas vezes a agência do Banco do Brasil não tem dinheiro, ou não se encontra aberta em horário adequado para atender o público. A situação se agravou tanto que alguns comerciantes procuram realizar uma audiência com a presença do Ministério Público para resolver o problema. Mas essa tentativa até agora não logrou atrair interesse da população, ou do prefeito.

No entanto, nenhum desses fatos, ainda que da maior importância, merece tamanha atenção como a escolha da musa do verão portelense.

A prefeitura, disposta a transformar a coroação da musa no auge da programação das férias de julho, investiu na realização do baile. Em vez da motoneta Honda Biz dos anos anteriores, este ano a prefeitura comprou para a vencedora uma moto cross Honda NXR 160 cc Bros nova. Moto que custa mais de R$ 11.000,00, prêmio esse que é o sonho de qualquer garota da cidade. Deste modo, o baile da Musa Verão 2017 deveria coroar a programação de férias de uma administração até agora sem brilho, sem realizações e sem inaugurações entregar para a população.

Desta vez, a festa voltou a ser realizada na sede do tradicional clube de futebol Camel, local onde era originalmente realizado o baile há mais de vinte anos atrás. No ano, o baile ocorreu no estádio Felizardo Diniz, este bem mais amplo e com maior público, mas sem as características de um grande baile. No ano passado o local escolhido foi a arena fechada em frente à praia, que tantas críticas gerou ao então prefeito por parte da oposição, que o acusava de “privatizar” a praia. Com a volta do baile ao seu antigo local de origem, era minha esperança que o baile voltasse a ter o glamour de antigamente. No entanto, se no passado a festa guardava um certo glamour, com a sede social ricamente decorada pelo José Maranhão, e o público elegantemente vestido a caráter para a ocasião, no melhor do traje social, desta vez a sede não tinha nada de decoração para a festa, e o público já não se traja mais com a elegância de duas décadas atrás.

De decoração feita pela SECELT (Secretaria de Cultura, Esporte, Lazer e Turismo) mesmo, apenas um enorme palco de quase dois metros de altura, que serviu só para dificultar a visão do desfile e afastar ainda mais as candidatas do público. No passado elas desfilavam no salão de danças, em meio ao público, não precisava de palco especialmente construído para a ocasião. Só pela construção do palco a prefeitura teria pagado uma pequena fortuna, sendo que o palco serviu apenas para o desfile das candidatas, o show das bandas aconteceu no próprio palco do clube. Presentes à festa estavam, além do secretário da SECELT, o vice-prefeito, o próprio prefeito, e o convidado especial, o deputado comunista Lélio Costa. A expectativa da premiação era grande.

Durante as semanas que antecederam à festa, o novo prêmio para a vencedora do concurso atiçou a imaginação da população. Segundo os boatos, o novo prêmio já teria uma vencedora certa: a suposta candidata-amante de um comerciante ocupante de um cargo de alto escalão na prefeitura. Nas redes sociais, perfis falsos espalharam que o resultado do concurso já estaria decidido. A festa seria apenas uma encenação para a entrega de presentes a amantes, pagos com o dinheiro público. Em uma cidade em que os boatos surgem a cada esquina, e ainda mais em uma administração marcada por escândalos e fofocas, os rumores rapidamente ganham ares de verdade.

O suposto descaramento da intenção logo causou indignação e ciúmes. As meninas jogadoras da seleção de vôlei do município, que recentemente trouxeram um troféu para casa, mas que receberam uma premiação muito aquém daquela oferecida à musa, logo reclamaram a desvalorização do esporte. Para o povo estava claro, para a prefeitura mais vale a mulher mostrar o corpo.

Para aumentar ainda mais as suspeitas, desta vez a SECELT preparou uma sessão de fotos para apresentar as candidatas ao público. Ótima a ideia no princípio, o resultado foi que o ensaio fotográfico foi francamente desfavorável algumas candidatas, enquanto pareceu favorecer umas outras. As candidatas foram fotografadas sob sol a pino, e algumas a uma certa distância, erros primários até para um fotógrafo iniciante. Além do mais, as fotos, desfavoráveis a algumas candidatas,  serviram só de munição para que alguns mal intencionados fizessem  zombaria e chacota das garotas em redes sociais, numa clara demonstração de falta de respeito ao espírito do concurso. Questionados eram os critérios de escolha das candidatas, quando não a própria falta de seriedade do concurso.

As candidatas desfilam diante dos jurados.

Tais questionamentos não são novos. No ano passado ocorreram após a escolha do Garoto Verão. Mas agora, dada a propaganda e a preparação feita pela prefeitura, a polêmica foi crescendo até o dia do baile. De modo que, no grande momento, todos estavam preparados. A sede social do Camel em si, embora não estivesse completamente lotada para a festa, encontrava-se fervilhando. Alguns amigos e parentes, para torcer para suas candidatas, trouxeram faixas e cartazes, formando uma verdadeira torcida organizada. E a maioria, se não torcia por uma candidata específica, estava francamente contrária a uma candidata, a suposta amante do alto funcionário da prefeitura.  E não somente torcia contra ela, mas estava preparada para acabar com a festa, caso o boato se tornasse realidade.

Anunciados o terceiro e segundo lugar, a expectativa era grande para o anúncio da vencedora. Segundos antes do grande anúncio, como uma artilharia em guerra, pronta para o ataque, ouvia-se os alertas, “preparar as latinhas de cerveja” e “os baldes de gelo estão prontos”... Na hora, o anúncio de que Tássia Paes era a vencedora veio como um alívio e um anticlímax para a turma que veio pronta para estragar a festa.
Tássia Paes é coroada Musa Verão 2017.
Gerusa Balieiro não poderia ser musa, não seria musa. Muito embora tivesse os atributos estéticos, não tinha a simpatia do público. Os boatos espalhados nas redes sociais minaram seu apoio junto ao público. Se vencesse, ganharia a moto mas viveria uma grande vergonha, senão agressão pública.

Durante as semanas, perfis falsos nas redes sociais espalharam o boato de que ela seria amante de um figurão de alto escalão na prefeitura, e que o concurso já estaria todo armado para que ela ganhasse o prêmio. A politização do concurso da Musa Verão fez com que o desfile se tornasse mais do que uma escolha da beleza. As suspeitas lançadas sobre a administração municipal recaíam sobre ela mesma. Perfis falsos e boatos espalhados por pessoas que se dizem de bem acabam com uma reputação e podem estragar um momento que deveria ser dos mais lindos.

Depois que todos respiraram aliviados, o vice-prefeito Evandro, o prefeito Manoel Maranhense e o deputado Lélio Costa puderam discursar calmamente para uma plateia que, se não aplaudiu, também não deu em ninguém um banho de cerveja e de baldes de gelo.


Terminado o mês de julho, passadas as férias, a população volta à sua mesma preocupação: se o salário pago pela prefeitura não vai atrasar, se a agência do Banco do Brasil não vai fechar, se os caixas vão ter dinheiro... Mas nada, nada gera tanta atenção do cidadão portelense como a escolha da Musa Verão.

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