sábado, 24 de maio de 2014

COMPANHIA AMACOL: MITOS E ILUSÕES DA POPULAÇÃO DE PORTEL

Visão aérea da fábrica de compensados da Amacol.

Já há mais de dez anos se fechou a fábrica de compensados da Amacol, mas seus mitos e ilusões ainda sobrevivem na cabeça dos portelenses, mesmo dos mais novos.
Não é exagero dizer que a cidade atual de Portel nasceu com a fundação da companhia pelos americanos. Antes, a população de Portel era meio que dispersa nos rios, nos “altos”, ou “centros”, como eles chamavam. Meu pai e minha mãe nasceram nesses interiores, no “alto” dos rios Pacajá e Camarapi. A sede do município em si era muito pouco povoada. Servia bem mais como entreposto comercial da produção que vinha do interior, rumo a Belém.
Tudo mudou no final da década de 1950, quando chegaram os norte-americanos e começaram a erguer ali, na foz dos rios Pacajá e Camarapi, aquela que seria uma das maiores indústrias do interior do Pará até então, a Companhia Amazonas Compensados e Laminados Ltda, depois chamada de Amazônia Compensados e Laminados, Amacol.
Os norte-americanos importaram todo o maquinário dos Estados Unidos, enormes tornos e caldeiras, para produzir e exportar da Amazônia o laminado e o compensado para as indústrias dos Estados Unidos. Como não havia população suficiente na cidade, chamaram trabalhadores de todas as redondezas. E ali, junto à fábrica formou-se a cidade atual de Portel.
Depois vieram os norte-americanos mesmos e construíram uma vila de casas reproduzindo uma cidadezinha dos Estados Unidos. Havia ao todo cerca de dez casas, todas bem amplas e cercadas por gramados, sendo uma casa de hóspedes, a “casa 6”, completa com um amplo salão de refeições e biblioteca com livros de todos os tipos. Embaixo havia um bar com salão de jogos, e logo ao lado havia uma grande piscina, para o lazer dos moradores americanos.
A vila de casas dos altos funcionários norte-americanos era chamada pelos brasileiros simplesmente de “as casas” da Amacol. Bem depois eu descobriria que os americanos as chamavam de “compound”, palavra em inglês que significa recinto, ou “cercado”. Era mais apropriado para descrever como eles viviam ali mesmo. Pois, quando você atravessava o campo de aviação que separava a Amacol do restante da cidade, havia uma distância abissal entre as duas realidades daqueles norte-americanos e da população de Portel. Era como se entrasse em um outro mundo.
Apesar disso, a relação entre americanos e portelenses sempre foi, na maior parte do tempo, muito amistosa. Lembro que o meu tio Wilson me levava, ainda muito criança, para passar um domingo na piscina da Amacol, convidado pelos americanos. Entre eles havia o anfitrião, chamado Henk, um ruivo, meio gorducho e bonachão, que divertia os brasileiros imitando peixinho e fazendo caretas. Acho que, como ele não sabia falar português, procurava se comunicar com gestos e caretas. Eu via a dificuldade enorme que ele tinha pra falar com os brasileiros, e foi aí que eu decidi aprender inglês. Ele depois casou com uma brasileira, a irmã do Patarrão, com quem foi morar com ele nos Estados Unidos. Esse americano depois, infelizmente, teria morte trágica ao saltar de uma cachoeira (minha convivência com os americanos foram uma verdadeira lição de vida, talvez um dia aqui eu conte alguns detalhes).
E assim, a população de Portel se acostumou a viver com aqueles americanos de comportamento excêntrico, que buscavam superar o tédio de viver em uma cidade pequena no interior da Amazônia, ora fazendo acrobacias aéreas com um avião sobre a cidade, descendo em parafuso e fazendo rasantes sobre a praia do Areião, ora praticando esqui aquático no rio Pacajá (hábito que depois os portelenses endinheirados começariam a imitar). Havia ainda a Katy passeando manhosamente de cavalo todo final pela orla da cidade. Foram muitos deles que moraram em Portel.
Nessa época a luz elétrica não funcionava a noite toda. Ela se apagava às oito da noite. Depois às onze. Mas só na Amacol a luz funcionava 24 horas por dia, sete dias por semana. Dizia-se mesmo que a Amacol havia negociado fornecer energia para toda a cidade, em troca da isenção de impostos, mas o governo brasileiro recusou a proposta. Como resultado, a cidade permaneceu no escuro.
E assim, enquanto ia dormir à luz das lamparinas, a população olhava a Amacol iluminada, e sonhava o dia em que poderia tomar conta de tudo aquilo. ”Mas se pelo menos os brasileiros pudessem tomar conta da Amacol...”, diziam.
Para o povo, a riqueza era a Amacol, e a Amacol era a fábrica, eram aquelas máquinas. E a população acreditava que poderia viver eternamente dos empregos da Amacol. A cidade nunca se preparou para o dia em que ela fechasse as portas. Qualquer outro tipo de produção se tornava insignificante perto da potência econômica da multinacional, de seus empregos, daquela tecnologia.
Segundo um amigo na época me contou, em tom meio de anedota misturada com orgulho, nem mesmo os engenheiros norte-americanos eram capazes de consertar aquelas máquinas da Amacol, só os portelenses. Certa vez veio dos Estados Unidos um engenheiro jovem e cabeludo que, ao chegar à fábrica, olhou a máquina, viu o defeito, postou-se em pé e abriu seu manual. Leu, leu e não conseguiu descobrir o conserto. Até que finalmente ele admitiu “chama o mecânico!”. E lá se foram chamar em casa o mecânico, provavelmente o velho Pamplona. E então, concluiu meu amigo: “Tá vendo? Nossos mecânicos sabem mais que os engenheiros americanos!”.
Essa anedota encerra um tanto de verdade, de ser provável mesmo que nossos mecânicos conheciam mais daquelas máquinas que o jovem engenheiro. Porém o que ela não revela, é que para um jovem engenheiro formado nos Estados Unidos na década de 1980, as velhas máquinas da Amacol importadas no final da década de 1950 deviam parecer peças de museu. Na verdade todo o equipamento da Amacol, que a população tanto avaliava, era maquinário obsoleto. Mas continuavam aqueles sonhos de riqueza no maquinário da Companhia.
Noutra ocasião, lembro, um portelense que havia trabalhado no navio que transportava os compensados para os Estados Unidos, e que por isso se julgava conhecedor da realidade da empresa. Durante uma conversa, à beira do campo do Amazonas, sentenciou: “Com uma caixa de compensados, eles (os americanos) pagam os salários de todos os trabalhadores brasileiros!”. Imagina então o que poderia fazer com o dinheiro das centenas, ou milhares, de caixas exportadas?
Apesar disso, o clima entre brasileiros e americanos continuava de muita amizade. O gerente então era o Jack Phelps, um senhor muito simpático, cujas filhas Polly, Abigail e Mary passaram várias férias de verão em Portel e fizeram muitos amigos (e namorados) entre os jovens locais.
Mas tudo isso havia mudado drasticamente quando eu voltei para lá, em 1987. Foi logo depois de ter ocorrido a grande greve.
Como todo movimento, as reivindicações da greve começaram de modo simples. Parece que os vigias pediam, inicialmente, nada mais que sanitários, para fazer suas necessidades. Mas nessa época o gerente já era outro, Scott Jackson. Ele era a pessoa errada, na hora errada. Não poderia haver um momento pior para ter um gerente como ele chegado à Amacol. A recusa e a ignorância do gerente norte-americano foram o estopim da revolta.
Operários da Amacol durante a grande greve de 1985.

Foi Scott Jackson que, praticamente, a exemplo do que os ingleses faziam em suas colônias, só faltou colocar uma placa na entrada das casas dizendo: “BRASILEIROS NÃO SÃO PERMITIDOS”. A placa pode não ter sido colocada, mas a ordem havia sido dada na guarita, só podiam entrar nas casas os brasileiros que estivessem a serviço. As visitas foram proibidas, namoros entre americanos e brasileiros não eram mais tolerados. Qualquer desobediência por parte dos americanos mesmos significava demissão.
Para piorar, aquele era ano de fim da ditadura militar, de redemocratização, de tomada de poder pelo povo. E entre reivindicações legítimas, de melhores condições de trabalho e de salário, e de sonhos de assumir o comando da empresa, a greve escalou para o rumo da radicalização, indo do fechamento e “lock-out” da fábrica, chegando até o cárcere privado dos norte-americanos nas casas e ameaças de agressão física, em meio às tentativas desesperadas de fuga dos gringos pela pista de avião. As relações entre brasileiros e americanos nunca foram a mesma desde então.
Já na época, retornado a Portel em 1987, eu ouvia falar do gerente cujas histórias de discriminação aos trabalhadores inflamaram a revolta dos brasileiros, o Scott Jackson, mas não o conhecia pessoalmente. Certa vez, estava eu na Amacol, debaixo da casa 7, quando chegou de bicicleta um rapaz norte-americano, alto, magro e simpático, que passou e me cumprimentou. Eu perguntei: “Quem é esse?”. E me responderam: “Esse é o Scott Jackson”. Fiquei com a impressão de que o diabo pode se apresentar de muitas formas, nem sempre como a gente imagina. Vinte anos depois ele teria um fim trágico, quando caiu o avião em que estava, na Malásia, matando também as suas duas filhas, entre as quais a Stephanie, que morou em Portel junto com os pais.
Qualquer que tenha sido o efeito da administração do Scott Jackson, sei que ela acabou repercutindo mal nos Estados Unidos. Tanto que a direção da Georgia Pacific decidiu colocar em seu lugar um gerente mais afável e experiente. Assim, Bruce Larson chegou a Portel com a missão de recuperar as relações com os brasileiros. Tanto que logo que, logo após sua chegada, organizou um verdadeiro banquete de apresentação, e convidou prefeito e autoridades do município, para celebrar junto com a alta administração da Amacol.
Conheci o gerente Bruce Larson ainda de sua primeira visita a Portel. Era uma pessoa muito simpática e de bom coração. Segundo ele me disse, o plano da Georgia Pacific era fechar simplesmente a Amacol, pois a qualidade do compensado exportado pela Amacol era muito baixa, e os custos não justificavam a sua manutenção. Porém, depois de conhecer a fábrica, Bruce viu que o problema estava no maquinário antigo, e não na qualidade da matéria prima. Assim, ele assumiu a responsabilidade de manter em funcionamento a fábrica, e a Georgia Pacific teria vendido a Amacol para ele, a um preço simbólico.
Contudo, anos depois, conversando com Bill McKinley, um engenheiro florestal norte-americano que vinha regularmente ao Pará comprar madeira, e que conhecia tanto a Amacol como o Bruce Larson, pois os dois vinham do mesmo estado, do Oregon, Bruce nunca foi dono da Amacol. A Georgia Pacific teria negociado a Amacol com uma fábrica da Malásia, o Bruce seria apenas o administrador.
Bruce Larson tinha uma preocupação não só com a Amacol, mas também com os rumos do município. Foi ali, na casa dele, que tive uma verdadeira lição sobre os rumos de Portel, uma lição que continua válida até hoje, mais do que nunca.
Lembro de uma vez durante um almoço, quando ele estava particularmente nervoso. A prefeitura, sem lhe comunicar, havia derrubado a cerca da Amacol para realizar obras na estrada, que passava ao lado. Eu falava então sobre o desenvolvimento do município, e etc e tal, quando ele, exaltado, se levantou e, naquele linguajar típico dos americanos, falou: “Se quiser desenvolver Portel, o prefeito tem que botar o traseiro no avião e ir atrás de recursos fora do município, fora do país, porque aqui dentro de Portel mesmo não há dinheiro suficiente para desenvolver o município!”.
Bruce Larson, gerente da Amacol.

Na hora, um pouco contrariado com aquela exaltação, eu calei, embora eu não concordasse exatamente com a resposta dele. Porém, depois, pensando melhor, eu fui dar razão ao Bruce e vi que esse é um conselho que vale para o prefeito até hoje. Se quiser desenvolver Portel, o prefeito tem que buscar recursos de fora, pois, tirando o que a Prefeitura tem que investir em educação, saúde, saneamento e pagamento da folha, sobra quase nada para investimentos de peso para gerar empregos no município.
Bruce Larson tentou modernizar a Amacol, a população de Portel ficou devendo a ele vários anos de sobrevida da velha fábrica, mas ele não conseguiu dar novos rumos à Companhia. Imagino a frustração com que ele deve ter partido sem realizar seus sonhos. Ele foi provavelmente o último gerente norte-americano a morar diretamente na Amacol. Depois todos os altos empregados passaram a ser brasileiros.
Independente de quem era o proprietário legal da empresa, contou Bill McKinley, seria difícil manter as operações da Amacol. No mercado internacional, os preços do compensado caíam continuamente, reduzindo cada vez mais o interesse da Georgia Pacific na empresa. Outro fator decisivo foi a implantação do Plano Real em 1994 e a desvalorização do dólar. A Amacol certamente recebia parcela significativa de receita cambial, advinda da diferença entre o preço entre a moeda brasileira e a moeda norte-americana. Com a desvalorização, ela passou a receber bem menos em real por cada caixa de compensado vendida nos Estados Unidos.
De fato, ao longo de toda a década de 1980, o preço do compensado permaneceu baixo, mas a alta cotação do dólar garantia a receita cambial. No entanto, no ano de 1992, os preços internacionais do compensado deram um salto, pulando de US$ 350 para US$ 751 a caixa, mas já no ano seguinte o preço caia para US$ 564, até voltar novamente para o patamar de US$ 300.
Raciocinando como o pessoal de Portel, calculando o número de trabalhadores pagos com a exportação de uma única caixa de compensados, é possível ter uma ideia das agruras da companhia. Em março de 1988, com a exportação de uma caixa de compensados, a Amacol pagava os salários de 6,73 trabalhadores. Em 1992, após a alta no preço do compensado no mercado internacional, a mesma caixa pagava 9,14 trabalhadores. Mas em 1998, após o Plano Real e a queda na cotação do dólar, a exportação de uma caixa de compensados pagava apenas 3,03 trabalhadores (a informação do preço do compensado do Banco Mundial, salário e cotação do dólar são do Ministério da Fazenda). Em outras palavras, a velha fábrica estava com o seu destino fadado.
Mas havia dificuldades ainda maiores que o simples preço do compensado no mercado internacional. Em meados da década de 1990, o compensado começou a sofrer a concorrência de um produto mais barato, o MDF importado da China. Nos Estados Unidos mesmo, a indústria madeireira encolheu. No Oregon, estado de onde vinha a maioria dos americanos da Amacol, o número de trabalhadores empregados na indústria madeireira caiu para menos da metade, de 70 mil para 25 mil, de 1990 até hoje.
No início do ano 2000, já, não fazia mais sentido manter em funcionamento a velha fábrica de quase de 50 anos. Assim os tornos e as máquinas, que a população antes acreditava ser sua maior riqueza, pararam de vez, o apito que chamava os trabalhadores para os turnos silenciou, e “as casas” já não tinham mais nenhum americano.
Antigamente a população dizia que quando a Amacol fechasse, a cidade acabava.
A cidade não acabou. Nesse momento já havia várias outras serrarias no município, e a direção da Amacol fez o que podia ser feito, orientou a produção para a exportação de madeira serrada. A empresa então já não era nem a sombra do que fora antes, mas ela ainda valia uma fortuna, em terras e madeira.
Nesse momento então, a população de Portel viu ruir mais uma ilusão, aquela de que, se o controle da empresa estivesse nas mãos de brasileiros, a cidade se beneficiaria bem mais com os lucros gerados pelos trabalhadores e pela riqueza da região. Na realidade o fato de os seus responsáveis serem estrangeiros como que protegia a Amacol contra os interesses locais, ela funcionava quase que como um enclave. Mas no momento que brasileiros administravam a companhia, esse poder começou a ser alvejado de vários lados, e a Amacol não estava mais protegida contra interesses.
A fábrica de compensados da Amacol fechou em razão da conjuntura internacional, mas a serraria poderia ter funcionado por muito tempo, mesmo que não empregando mais tantos trabalhadores.
Mas nada justificava o que aconteceu em maio de 2008, quando uma turba de mais de duas mil pessoas, incitadas por aproveitadores políticos, invadiram o terreno, saquearam e queimaram as casas, não poupando nem mesmo o consultório do médico. Em meio ao caos, saques, confusão e até mortes, em meio à destruição daquele que a população uma vez acreditava ser o seu maior patrimônio.
Antiga guarita da fábrica sendo depredada por invasores.

E assim, em poucos dias, onde havia opulência e riqueza, nasceu um bolsão de pobreza, a favela da Portelinha.