sexta-feira, 6 de novembro de 2015

A SITUAÇÃO DOS AGRICULTORES EM PORTEL

Dona Júlia Serrin, em sua maloca, mostra sua certificação de agricultora familiar. (Foto: Hélio Monteiro)


No sábado, dia 8 de agosto, em Portel, soube da inauguração de uma nova maloca na Prainha, que estava marcada para o dia seguinte. Como não conhecia como estava a praia após a inauguração da nova estrada, fiquei curioso em ir ver o local.

Ainda que sem querer, essa ida à Prainha acabou me proporcionando uma amostra muito boa da situação do agricultor em Portel.

O Vendedor de Laranjas

Na manhã do dia seguinte, após a saída da procissão do círio de Nazaré, me apressei em procurar um moto-táxi para ir à Prainha.

Direto em frente de casa havia um moto-taxi parado aproveitando a pausa para saborear algumas laranjas, que um senhor vendia em um carro de mão. Negociei a corrida e, enquanto aguardava o moto-táxi terminar de sorver suas laranjas, aproveitei para conhecer melhor o vendedor. Perguntei ao vendedor se as laranjas eram produzidas ali em Portel mesmo. Ele respondeu que sim, que eram produzidas ali na estrada no sítio de seu sobrinho Tangará, um conhecido professor.

Perguntei então como havia sido a colheita, se havia sido boa. Ele disse que sim, que as laranjeiras estavam carregadas de laranjas, mas que o proprietário não viu a cor do lucro. Quis saber então o porquê da situação. Ele me explicou que não havia condição de vender em Portel toda a produção, que a colheita havia sido muito boa, mas agora o produtor não achava pra quem vender. Ele me contou ainda que, apesar de haver produção local, muitos supermercados preferiam comprar de fora, trazer laranja de Belém do que comprar do produtor em Portel mesmo. Então, a alternativa pra ele era tentar vender na rua, com seu carrinho de mão.

Fiquei impressionado com a situação. Apenas um ano antes eu ouvi um vendedor de lanche reclamar da falta de polpa de fruta em Portel para fazer suco. Agora havia laranja, mas o produtor não conseguia vender toda sua colheita.

Essa realidade não é exclusividade de Portel. À medida que as antigas mercearias dão lugar aos supermercados, mais difícil se torna para os agricultores encontrar espaço para fazer seu produto chegar até os consumidores. Ao agricultor, só resta vender seu produto na beira das estradas, ou nas cidades, na carroceria de caminhões ou em bicicletas cargueiras (como é o caso do agricultor Eliseu, que eu já mostrei aqui). Enquanto os supermercados preferem comprar frutas de fora.

Esse fato não é exclusividade de Portel. Em Belém mesmo, as bananas vendidas nos grandes supermercados, como o Líder e o Yamada, vêm do Sítio Barreiras, na Bahia, irrigadas com as valiosas águas do rio São Francisco, o Velho Chico, um rio que está secando. Enquanto aqui no Pará temos abundância de água, mas nossos produtores não tem acesso aos grandes supermercados. O resultado está no preço que o consumidor paga pelo alimento. Em um restaurante, um copo de suco chega a custar mais que o dobro que um de refrigerante.

Dona Júlia Serrin

Terminado o moto-taxista de chupar suas laranjas, rumamos para a Prainha.

Ao chegarmos ao local, reparei que não sabia exatamente o endereço da nova maloca, que ia ser inaugurada. Por descuido havia me esquecido de trazer o folder, nem pensava que era preciso. Saímos então procurando o local, pois há hoje na Prainha várias localidades que funcionam como bares.

Chegamos à maior delas, e o moto-táxi disse: “só pode ser aqui”. Na verdade a maloca já havia sido inaugurada semanas atrás, mas, como eu não tinha mais muito tempo para procurar, resolvi aproveitar a paisagem. Fiquei tomando uma cerveja e apreciar a praia.

Olhando o bar, vi que havia na parede da barraca um Selo de Identificação de Participação na Agricultura Familiar (SIPAF). Perguntei pela dona, disseram que ela ainda estava por chegar. Quando chegou, aproveitei para conversar com ela.

Cansada, tinha acabado de chegar do campo. Parecia mais uma “boia fria”, com chapéu e panos na cabeça cobrindo os cabelos. Era a dona Júlia Serrin, agricultora do rio Acuti-Pereira.

Dona Júlia Serrin parece jovem, mas já tem a pele marcada de quem trabalhou muito tempo sob o sol e as mãos grossas de quem fez da enxada seu instrumento de trabalho.

No entanto, em vez de se reclamar do trabalho na roça, ela conta com orgulho sua luta pela terra e o esforço para plantar, enquanto puxa uma pasta e começa a mostrar certidões, diplomas, fotos, certificados e mostra um mapa georreferenciado do seu terreno, como que ilustrando diversos momentos sua vida, que ela exibe como troféus pelo seu esforço.

Ela conta também da cooperativa dos agricultores do rio Acuti-Pereira, de como aquela comunidade, tão sofrida após a praga dos morcegos há dez anos atrás, renasceu após os projetos da ONG Piaberu.

Além das frutas, este ano a colheita de feijão-caupi foi boa, disse ela, mas, no entanto, não há em Portel onde escoar a produção. Ela no final perdeu 150 quilos de feijão, o equivalente a duas sacas e meia de sessenta quilos, por não ter para quem vender.

Da mesma forma que o vendedor de laranjas, ela não encontra espaço nos supermercados de Portel para comercializar seu feijão. Para piorar, há a preferência do consumidor pelo feijão rajado vermelho, mais caro, em vez do feijão-caupi, mais barato. Assim, o consumidor de Portel acaba consumindo feijão produzido em Unaí, Minas Gerais, cuja produção muitas vezes emprega até trabalho escravo, em vez de comprar feijão cultivado no município, pelo seu irmão ali do lado.

Os certificados mostrados por dona Júlia Serrin comprovam a participação dos agricultores nos cursos da Secretaria de Desenvolvimento de Portel (SEDES), Emater, SENAR, Embrapa, assim como a obtenção do Selo de Inspeção Municipal e do Selo Identificação de Participação da Agricultura Familiar (SIPAF). Os agricultores participaram de tudo quanto era treinamento que estava à sua disposição. Mas agora que conseguem produzir, dona Júlia e os outros produtores não encontram mercado para os seus produtos.

Sem conseguir escoar toda sua produção, dona Júlia Serrin decidiu então abrir uma maloca na praia, para assim conseguir vender sua polpa de fruta, sucos e seus pratos de refeição.

SIPAF

Essa é a realidade de um país que historicamente preferiu investir na agricultura de exportação em vez de priorizar a agricultura familiar, a qual coloca comida na mesa do cidadão. Como resultado, o preço da saca de feijão custa mais que uma saca da soja, fazendo com que o alimento chegue mais caro ao consumidor.

Uma das iniciativas mais recentes do Governo Federal para corrigir essa distorção foi a criação, há seis anos, do Selo de Identificação na Agricultura Familiar (SIPAF). O selo é concedido a cooperativas que reúnem diversas famílias que tem como a atividade de renda a agricultura. No caso do agricultor, o único requisito é ter o CNPF regularizado (ou CNPJ no caso da cooperativa). E se o agricultor ou a cooperativa possuir a Declaração de Aptidão ao Pronaf, a mesma tem que estar válida. O selo tem validade para cinco anos e o Governo Federal já autorizou mais de mil concessões, para mais de dez mil itens.

Mas em Portel, apesar de possuir o selo, dona Júlia Serrin ainda não percebeu os benefícios do programa.

Programa do SIPAF do Governo Federal. (Fonte: MAPA)

PNAE

Uma outra possibilidade de escoamento da produção dos agricultores de Portel poderia ser pela Prefeitura, pelo Programa Nacional de Alimentação Escolar. Esse programa, que foi criado ainda em 1979 durante o Regime Militar, passou a prever a aquisição de produtos da agricultura familiar para a merenda dos alunos, a partir de 2009, por meio da Lei nº 11.947.

Pela lei, pelo menos 30% dos recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) devem ser utilizados para a aquisição de gêneros da agricultura familiar, sendo que essa aquisição é dispensada da exigência de processo licitatório.
Só no ano de 2014, o Governo Federal repassou para a Prefeitura de Portel, por meio do FNDE, o valor de R$ 1.854.224,00 (dados do portal do FNDE). Se fosse respeitado o mínimo exigido pela lei, pelos R$ 556 mil deveriam ter sido comprados dos agricultores familiares do município. No entanto, não há nenhum sinal de compra nesse montante.

A razão mais plausível para essa omissão é que os próprios agricultores não estejam em condições de negociar com a Prefeitura. Pois, pela mesma lei, o percentual mínimo a ser adquirido da agricultura familiar pode ser dispensado no caso de inviabilidade de fornecimento regular e constante, ou que não haja a possibilidade de emissão do documento fiscal correspondente. Dado que a organização em cooperativas ainda é evento raro em Portel, dificilmente o agricultor individual estaria em condições de emitir documento fiscal.

Deste modo, mesmo dona Júlia Serrin tendo o SIPAF, o PNAE não consegue beneficiar o agricultor em Portel.

Assim, sem conseguir vender para a Prefeitura e sem acesso ao mercado em Belém, dona Júlia decidiu abrir uma maloca na praia para oferecer parte da sua produção diretamente ao consumidor.

Mas nem todos os agricultores têm a opção de vender diretamente ao consumidor.

A Prefeitura e o Incentivo à Produção Local

Apesar de não querer me basear em evidência anedótica, como se diz em estatística, está claro que esta é a situação de muitos agricultores em Portel.

Nos últimos anos a Prefeitura tem feito um grande esforço no sentido de incentivar a produção agrícola no município, por meio, sobretudo, da distribuição de sementes e treinamento de agricultores. Os frutos dessa iniciativa não deixaram de surgir. Hoje Portel colhe mais, e a colheita está mais variada.

Alguns produtos têm acesso fácil ao mercado. Esse é o caso da farinha de mandioca, que conta com atravessadores que negociam direto com o produtor. Outros, como os horticultores, conseguem comercializar sua colheita facilmente no pequeno comércio, ou vendendo diretamente às donas de casa.

Contudo, se a Prefeitura de Portel não quiser ver boa parte do seu esforço de apoio à produção agrícola ir por água abaixo, ela deve fazer um planejamento completo, não só do plantio e cultivo, mas também da comercialização. Nesse sentido, fazer com que os comerciantes incluam os produtos da agricultura familiar nas prateleiras de seus comércios não é tarefa tão difícil.

Como o maior comprador do município, a Prefeitura tem um enorme poder de persuasão para convencer os comerciantes a oferecer a produção local aos seus fregueses. Nesse sentido, o prefeito tem como pressionar os comerciantes a colocar a produção local em suas prateleiras. Da mesma forma que tem promovido localmente a campanha “Compre do Pequeno Negócio”, do SEBRAE, a Prefeitura pode incentivar a agricultura familiar junto ao comércio local, que atualmente continua comprando de fora aquilo que pode adquirir localmente. Melhor ainda seria auxiliar os agricultores a conquistar mercado em outros municípios. Mas para isso é fundamental que os produtores possam assegurar primeiro o mercado municipal.

Se não tomar iniciativa no sentido de planejar a comercialização do produto agrícola, o resultado será a redução da área plantada, pela falta de condições do agricultor para escoar a produção, e o consequente agravamento da pobreza no município.

E essa vai ser mais uma oportunidade perdida de gerar esperança de emprego para a população jovem do município.