sábado, 16 de abril de 2016

ESTRADA DE PORTEL: APOGEU E ABANDONO

Sr. Estanislau na estrada observa o terreno do seu sítio coberto pelo lixo jogado pela prefeitura.

Em meados do século passado, uma leva de maranhenses migrou para o interior de Portel. Eles teriam uma importância vital em um dos marcantes empreendimentos da história da cidade.

Aqueles primeiros maranhenses eram de melhor situação social ou econômica e acabaram abrindo caminho para a vinda de muitos outros. Entre esses pioneiros estavam nomes como Benedito Carvalho, Waldemar Franco, Chico Costa, Doda e Antônio Vieira (o seu Antônio Zomba como é mais conhecido), entre outros. Muitos desses encontraram terras no interior, tal como o velho Carvalho, que se estabeleceu inicialmente no Catispera, rio Pacajá.

Depois desses primeiros, houve uma verdadeira migração de maranhenses para Portel. Estes últimos já não tinham a mesma origem social que os primeiros. Eram de condição econômica bem menos favorável, e migraram para Portel seguindo uma verdadeira epopeia. Eles vieram do Maranhão, como diziam pejorativamente os portelenses da época, “por debaixo do fio”, seguindo o caminho da ferrovia. Eles atravessaram a nado o rio Gurupi, que divide o estado do Pará do vizinho Maranhão, nus carregando as trouxas nas costas. Já no Pará, seguiram a pé o caminho dos trilhos da Estrada de Ferro Belém-Bragança para chegar a Belém e depois continuar a viagem de barco até Portel.
Essa segunda leva de maranhenses já não encontrou terras no interior, não seguiram o curso das águas, para o alto dos grandes rios. Em vez disso, eles abriram caminho por terra, no que depois seria a estrada de Portel.

Foram aqueles maranhenses, que abriram picada na estrada que ia da cidade até o quilômetro dez. Na verdade, a estrada de Portel, para ser justo à história, deveria ser chamada de “estrada dos maranhenses”, em lembrança àqueles primeiros imigrantes, que lá chegaram ainda na década de 1960. Como prova, até hoje ainda existe por lá a Vila dos Maranhenses. Ali, foram os parentes do seu Antônio Zomba, em grande parte, que abriram caminho a terçado da estrada até quase o quilômetro dez.

Na cidade, nem sempre essa segunda leva de maranhenses era vista com bons olhos. Conta-se que o prefeito Ladislau Queiroz não gostava daqueles audaciosos maranhenses que vieram “por debaixo do fio”. Mas, outros já viam o aproveitamento daquela mão de obra recém-chegada como o uma boa oportunidade para o futuro de Portel.

Assim, ali sentado por detrás do balcão de sua farmácia, o comerciante Felizardo Diniz, ele próprio um pernambucano, discorria com amigos e fregueses sobre suas preocupações com o futuro de Portel. “A cidade não podia depender só da Amacol”, dizia ele. Na época, a multinacional exportadora de laminados e compensados estava no auge do seu poderio, empregava diretamente mais de mil pessoas no município, que construíram a cidade em volta da fábrica. Parecia até um desatino falar que a cidade não poderia depender só da Amacol. “O município tem que ter agricultura”, dizia o seu Felizardo.

Quando se elegeu prefeito, para o mandato de 1978 a 1982, Felizardo Diniz cuidou de por em prática os seus planos. Ele idealizou e implementou um grande projeto de assentamento agrícola, demarcando lotes de duzentos e cinquenta metros de frente por mil metros de fundos (área de 25 hectares), que ele distribuiu aos agricultores portelenses, em verdade, grande parte vindos do Maranhão. Felizardo Diniz abriu a estrada até o quilômetro dez, e seguiu adiante, abrindo para o trânsito de veículos até o quilômetro quarenta e sete. Esse era o verdadeiro início da estrada Portel-Tucuruí, um genuíno sonho de saída do isolamento dos portelenses.

Quando criança, eu conheci toda a realidade daquela epopeia nascida dos sonhos do prefeito Felizardo Diniz e dos braços dos maranhenses. Era a coisa mais empolgante.
Até o quilômetro dez, a estrada era ladeada por uma sequência de sítios, todos produtivos e muito bem cuidados.

A estrada em si antes começava no próprio campo de aviação (hoje rua da Vivência), e não passava de um caminho ladeado na direita pelo terreno da Amacol e na esquerda pela floresta de Pinho, que mais tarde daria origem ao nome do bairro. Quase não havia casas nesse trecho.  Mais adiante, a estrada propriamente dita começava na oficina de caminhões da prefeitura, ao lado da qual havia uma vila de casas, onde morava a família do Marajó, um vaqueiro que veio para Portel, oriundo da grande ilha, para trabalhar com gado.

A partir dali, no lado esquerdo da estrada começava então o sítio do meu avô Joaquim Monteiro, constituído de um terreno comprado do seu Luso dos Santos havia muitos anos. Na primeira parte do terreno, junto à estrada, havia um curral, onde durante anos meu pai, Estanislau Monteiro, criou gado. Logo em seguida, havia uma casa de farinha completa, uma das mais bonitas casas de farinha que eu já vi na vida. A casa do sítio em si era muito humilde, de madeira enegrecida, sem pintura. Mais adiante havia a casa do Juscelino, um irmão de criação do papai, que lá morou durante muitos anos com a família. Juscelino na roça ali atrás por longo tempo plantou abacaxi e mandioca. Ao todo o terreno ao todo tinha cerca de 800 metros de frente por um quilômetro de fundura, chegando até quase o igarapé do Muim-Muim.

A viagem de caminhão pela estrada era uma aventura. Os mais sortudos iam na boleia com o motorista, o saudoso seu Jiló, mas a meninada  preferia ir na carroceria, equilibrando-se ao vento sobre o caminhão em movimento. Era uma diversão desafiar o risco de cair de cima do caminhão em alta velocidade, que ia parando ao longo do caminho para pegar agricultores ou carregar algumas sacas. Mais gratificante ainda era ver as propriedades. Aonde chegávamos éramos saudados por perus, galinhas e marrecos. Criação havia bastante. Até hoje quando escuto o canto do anu-coroca ou vejo uma árvore de embaúba me lembro daquelas paisagens.

Passando o sítio do meu pai, havia o sítio do seu Pedro Japonês, com sua horta sempre muito bem mantida. Logo depois tinha o sítio do seu João da Laury, como era conhecido o nicaraguense Juan Valle, casado com a portelense dona Laury. O sítio dele era muito bonito, tinha uma casa muito bem acabada e confortável, cheio de flores ao redor no quintal. Mais adiante havia a fazenda do seu Anésio, um dos maiores produtores portelenses, rico no cultivo de pimenta do reino. Essa fazenda ficava não muito longe do sítio do seu Leal, que cultivava frutas e mantinha uma boa criação de galinhas.

Mais adiante, o sítio do padre, como era conhecido o Sítio Emaús, contava com uma linda plantação de abacaxi, mantido por um projeto da Igreja Católica do qual participavam os adolescentes dos grupos  de jovens da igreja. Foi entre os garotos que iam para o sítio do padre que aconteceu um dos poucos acidentes, de que eu tive notícia, envolvendo alguém cair de caminhão. Foi, se eu não me engano, com o Ajaks Gomes, que caiu e sofreu escoriações nos glúteos, sem muita gravidade, mas de qualquer forma um grande susto, que lhe valeu muitas brincadeiras por parte dos colegas durante um bom tempo.

Havia também a propriedade do seu Chico Anacã, na frente da qual havia uma grande árvore de ingá, na qual subíamos para apanhar os frutos, sempre trazendo muitas sacas de ingá, que vínhamos comendo durante a viagem. Ali também se carregava no caminhão muitas sacas de feijão, arroz, milho e farinha.

Quando se chegava ao quilômetro dez, onde havia um igarapé muito gostoso, junto ao qual frequentemente parávamos para tomar banho, de repente acabava a mata fechava e se deparava com um grande campo de vegetação aberta, semelhante a uma savana, era o Campo de Natureza. Aquele campo de áreas branquinhas, resquício pré-histórico de algum mar interior, era um dos piores trechos da viagem. As rodas do caminhão simplesmente atolavam na área fofa. Muitas vezes a viagem acabava ali mesmo.

Mas quando passávamos o Campo de Natureza, chegávamos então finalmente ao ramal, onde se entrava novamente numa região de floresta fechada. Ali, verdadeiramente, a natureza era inclemente. Novamente os caminhões precisavam fazer um grande esforço para não atolar nos buracos e poças de lama.

Era incrível a dificuldade do percurso da estrada. Passávamos quase uma manhã inteira para percorrer apenas 40 quilômetros! Muitas vezes ficávamos pelo caminho, esperando reforço de um novo caminhão para rebocar o atolado, para que pudéssemos seguir viagem.

Aquele era o último trecho transitável da estrada. Ali, no ramal, em meio à floresta fechada, lá pelos quilômetros quarenta, havia um dos últimos assentamentos agrícolas iniciados pelo prefeito Felizardo Diniz. Era impressionante ver, em meio às agruras da natureza, os agricultores tentando arrancar seu sustento da terra. E ali se colhia muito, cana de açúcar, milho, feijão, mandioca, muita produção, que trazíamos no caminhão na viagem de volta para a cidade.

Mas, infelizmente, todo aquele projeto de desenvolvimento agrícola de Portel não foi além do mandato do próprio prefeito Felizardo Diniz. Em 1982, após a eleição do prefeito Elquias Monteiro, a prioridade deixou de ser o campo e a estrada, e passou a ser a cidade. Elquias começou uma reforma urbana, trouxe o fórum para Portel, abriu a praia da Vila e construiu ali um hospital, ginásio, associação de funcionários, museu, residência oficial do prefeito, além do novo fórum do Tribunal de Justiça.

Os projetos de assentamento do prefeito Felizardo foram abandonados. O transporte dos agricultores e da produção feito no caminhão da prefeitura foi definitivamente encerrado. A agricultura deixou de ser alternativa de desenvolvimento para o município.

Por volta de 2004, quase trinta anos depois de minhas primeiras viagens até o ramal, voltei a percorrer a estrada até o quilômetro dez.

A paisagem que se via agora ali era de abandono e desolação. Dos sítios que antes ladeavam a estrada, só havia ainda o sítio do padre, mas já sem a plantação de abacaxi. Do lado da estrada, só mato e nada de agricultores, a juquira invadiu o terreno onde antes havia as plantações. Nem mesmo o canto do anu-coroca se ouvia mais.

Os agricultores, deixados a pés depois que o prefeito Elquias Monteiro cortou o transporte de caminhão, foram abandonando as plantações, os que ficaram regrediram a um estágio de extrativismo e caça.

Ser agricultor em Portel se tornou sinônimo de dureza, estar “na roça”, como dizia pejorativamente o povo, se tornou sinônimo de estar numa pior.

Com o crescimento urbano, o sítio do papai, no início da estrada, começou a ser ameaçado de invasão. Meu pai, prevendo o pior, começou a dividir o terreno e a vender lotes, pois era impossível proteger toda a área do terreno. Sabendo da importância da área para a expansão da cidade, o prefeito Elquias, já em seu segundo mandato, entrou em negociação com o meu pai para comprar o terreno, mas como o pagamento das parcelas não foi concluído pelo prefeito, meu pai reteve parte do sítio onde ficava a casa do meu avô e do seu Juscelino. A área onde antes ficava o curral foi entregue à prefeitura.

Porém, com o passar do tempo, os invasores começaram a ameaçar de invadir o restante do terreno. Presenciei, em certa ocasião, cena dramática de o meu pai enfrentar invasor armado com terçado na mão. Depois, a prefeitura mesma começou a fazer pressão sobre a posse do terreno, mandando o próprio caminhão da prefeitura jogar lixo no local, de modo a tentar caracterizar o abandono da propriedade.

Em 2004, ano de eleições para prefeito, foi a última pá de cal. Os invasores fizeram a investida final sobre o restante da área do sítio, armados e munidos de material de construção entregue por caminhões contratados por candidatos às eleições , estes sedentos de votos dos miseráveis, eles rapidamente tomaram para si o restante da propriedade. Naquele ano havia levado amigos agrônomos para iniciar um projeto agrícola em Portel, a invasão violenta e premeditada pôs fim aos planos.

Hoje quase o bairro inteiro da Cidade Nova se localiza em área antes pertencente ao sítio do meu avô. Posteriormente meu pai ganhou na Justiça direito a indenização da prefeitura. A negociação do pagamento seria feita no mandato do prefeito Pedro Barbosa, eleito em 2004. Não tenho detalhes dessa negociação, uma vez que eu não estava próximo e que meu pai nutria muita amizade com o Pedro, mas o preço pago pela prefeitura foi simbólico diante de toda a extensão do terreno. Nunca pedimos reparações posteriores.

Este fato até hoje é utilizado por adversários anônimos para me atingir ou tentar manchar a reputação do meu pai, alegando que meu pai teria vendido o terreno mais de uma vez. Mas a indústria das invasões com motivações políticas não faria só a nós de vítimas em Portel. Em 2008 (outro ano de eleição) foi a vez da grande área da Amacol, a empresa multinacional que um dia simbolizou todo o sonho de grandeza do município, ser violentamente invadida. A mensagem era clara: não deveria haver espaço para outro poder em Portel que não o político.


Assim, com a Amacol fechada e seu terreno invadido, e os agricultores abandonados na estrada à própria sorte, cumpriu-se o desígnio sonhado pelos políticos: a prefeitura se tornou quase que a única fonte de empregos no município. E quem quisesse ter um emprego, tinha que pedir aos políticos.
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Este texto foi pensado inicialmente para ser uma trilogia junto com dois outros:

O objetivo era mostrar o passado e as novas possibilidades de desenvolvimento para o município. Esses artigos deveriam ser lidos em conjunto.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

DESEMPREGO EM PORTEL SEGUE O RITMO DO RESTANTE DO PAÍS

Depois de um ano de recuperação em 2014, o desemprego em Portel voltou a crescer em 2015, como já havíamos adiantado em meados do ano passado. Essas são as informações reveladas pelos números divulgados pelo CAGED, do Ministério do Trabalho. O ano de 2015 fechou com um saldo de 200 contratações em carteira assinada contra 262 demissões, resultando em uma perda líquida de 62 postos de trabalho.

Esse resultado negativo segue a tendência geral de perda de emprego, observada pelo país inteiro. É um dado desanimador principalmente quando comparado com o período de 2011 a 2013, em que Portel perdeu 1.156 postos de trabalho. Mas não é tão ruim quando comparado com o município vizinho de Breves, que teve uma perda líquida de 95 postos de trabalho. Breves amarga o segundo ano seguido de aumento do desemprego. Enquanto na capital, Belém, em seu terceiro ano de retração, fechou com quase doze mil empregos a menos em 2015.

Os dois municípios vizinhos oferecem, aliás, um bom comparativo na solução para a crise do fim do ciclo da indústria madeireira, que aconteceu em 2008. Enquanto Breves levou um golpe ainda mais violento que Portel com fechamento das serrarias, sofrendo perda de 1.201 empregos de carteira assinada, o município dos furos do Marajó logo se recuperou, encontrando vocação como prestadora de serviços de saúde e educação para os moradores das cidades vizinhas.

O Hospital Regional de Breves abriu em 2010 e, no período, várias faculdades particulares estabeleceram-se no município. Posteriormente o campus da UFPA em Breves foi ampliado, passando a oferecer mais cursos, inclusive de pós-graduação. Atualmente, dezenas de estudantes de Portel viajam diariamente para Breves, para cursar a faculdade, sem contar estudantes de outros municípios. Como resultado, entre 2011 e 2013, enquanto Portel perdeu 1.156 postos de trabalho, Breves ganhou 778 novos. Mas essa fase de crescimento do município dos Furos do Marajó parece ter se esgotado, e Breves entra no segundo ano de crescimento do desemprego.

De qualquer forma, fica o exemplo para Portel: cada município deve investir na sua vocação. Enquanto para Breves está localizada em uma ilha, junto a uma via fluvial que é passagem entre Belém e as principais cidades da Amazônia, e tem naturalmente a lucrar com o comércio e a prestação de serviços, Portel é continente, e fica localizada em uma ponta, que é fim de linha dos barcos.

A saída para Portel é investir em produção agrícola, na estrada, e no escoamento dessa produção para o restante do país, e do mundo. Esse é o remédio contra o desemprego. 

domingo, 3 de janeiro de 2016

COMUNIDADES DO CAXIUANÃ, BOLSA FAMÍLIA E 'EFEITO MORTADELA'



O artigo da Folha de São Paulo

Na edição de 19 de novembro último, um artigo publicado pelo jornal Folha de São Paulo transformou em notícia nacional os hábitos alimentares de uma comunidade no interior de Portel e sua relação com o programa Bolsa Família, do Governo Federal, ao mesmo tempo em que desnudou todo o preconceito da mídia contra os que precisam dos programas sociais.

O artigo, intitulado “Na Amazônia, Bolsa Família causa ‘efeito mortadela’ entre ribeirinhos”, divulgou os resultados de pesquisa realizada pela bioantropóloga norte-americana Barbara Piperata junto a comunidades do Caxiuanã, no rio Anapu, interior de Portel.


Tomando como ponto de partida uma pesquisa científica, o artigo é um belo exemplo de como o desconhecimento sobre a Amazônia e o viés ideológico da mídia distorcem a visão dos fatos.


Em seu artigo, o principal foco do jornalista Gabriel Alves é quanto à conclusão da pesquisadora de que o recebimento do benefício do Bolsa Família diversificou, mas não melhorou a alimentação dos ribeirinhos. Resultado esse chamado pelo jornalista de ‘Efeito Mortadela’, em razão da introdução desse item na alimentação dos beneficiários. Entre os comentários publicados no site, muitos leitores foram rápidos em condenar o “assistencialismo” bancado pelo Governo Federal.


Assim, o tom do artigo é claramente negativo quanto aos efeitos do programa Bolsa Família, ainda que mencione a afirmação da bióloga quanto a ser difícil afirmar se os impactos do programa são bons ou ruins. Na conclusão, afirma-se também que não há interesse por parte dos pesquisadores brasileiros em pesquisar regiões afastadas, e que tampouco houve interesse por parte dos representantes dos governantes quanto aos resultados da pesquisa.


Apresentação da Pesquisadora Barbara Piperata

A professora Barbara Piperata é bióloga formada pela Universidade do Colorado, nos Estados Unidos, onde obteve PhD em antropologia, e atualmente é professora na Universidade de Ohio. Seu principal campo de pesquisa é em energia reprodutiva, no estudo de práticas e estratégias pós-parto visando a conservação de energia para a lactação pela mãe e as condições de saúde do bebê.

Realizados nas comunidades ribeirinhas de Caxiuanã, no rio Anapu, em Portel, seus estudos comprovaram a situação de insegurança alimentar na população do interior do município e registraram detalhadamente os hábitos alimentares dos entrevistados. Os dados foram levantados em dois períodos. Primeiro em 2002, quando a bióloga morou durante dois anos no Caxiuanã, e avaliou 469 pessoas. O segundo em 2009, quando foram examinados 429 indivíduos.


Os dados foram publicados em 2011, em um artigo no American Journal of Physical Anthropology. Em novembro, Piperata apresentou os resultados de seu trabalho em evento do Centro de Pesquisa em Alimentos, na USP.

As conclusões da Pesquisa

Antes de fazer uma análise superficial e enviesada, é preciso refletir bastante sobre as constatações da pesquisadora norte-americana em Caxiuanã.

Entretanto, ao fazer aqui uma reflexão sobre a publicação da Folha de São Paulo, é preciso admitir, em primeiro lugar, que não tive acesso direto ao artigo da professora Piperata, o qual não está disponível gratuitamente ao público. Logo, não questiono o valor da pesquisa da autora, a qual se reveste da maior importância. Minhas conclusões se referem àquelas relatadas no artigo da Folha de São Paulo.


A principal conclusão do artigo do jornal é de que “a renda extra do Bolsa Família não melhorou os hábitos alimentares na região”. Os ribeirinhos agora conseguem ter acesso a produtos que eles antes apenas ocasionalmente podiam obter, tal como feijão e arroz, mas, por outro lado, aumentou o consumo de alimentos não saudáveis, tais como carnes enlatadas e biscoitos, ricos em gordura e sódio. Além desses produtos, aumentou o acesso a carne seca, mortadela e bens de consumo duráveis, tipo aparelhos de televisão e geradores elétricos.

Antes, os ribeirinhos dependiam essencialmente da pesca e caça, além da produção local de farinha de mandioca. Agora eles têm condições de comprar uma variedade maior de produtos no comércio da cidade mais próxima, através do auxílio do Bolsa Família.


A professora constatou também que, apesar de ter havido uma redução da ingestão energética total, houve ganho de peso por parte das mães. Uma possível explicação seria a diminuição da atividade física, em particular do trabalho na lavoura de mandioca. Antes da introdução do Bolsa Família na região, em 2005, 100% dos lares cultivavam mandioca. Em 2009, eram apenas 65%.

Essas mudanças geraram, segundo a professora, dois efeitos. Um é o “efeito mortadela”, ou seja, a introdução de alimentos industrializados na alimentação, tal como a mortadela. O outro é o “efeito fim do mês”, momento em que começa a escassear a quantidade de comida comprada na cidade no início do mês, quando o caboclo vai receber o benefício do Bolsa Família.


Professora Piperata apresenta resultados de sua pesquisa a comunidade do Caxiuanã. (Fonte: Universidade do Colorado)

Outros fatos observados pela professora parecem bastante evidentes, tal como a falta de atenção à saúde e à educação. Isso se revela, por exemplo, na baixa estatura média dos indivíduos e no baixo índice de massa muscular, resultantes da deficiência nutricional da população. Essa deficiência nutricional resulta, por sua vez, da própria falta de conhecimento da população quanto ao valor nutricional dos alimentos.


Reflexões sobre o Resultado da Pesquisa


Minha primeira reação foi de surpresa, quando li essa notícia da introdução da mortadela no cardápio de uma população interiorana de Portel. Desde as minhas mais remotas lembranças a mortadela é consumida pela população do interior. Da mesma forma que a carne em conserva, por não exigir de refrigeração, a mortadela é uma das fontes de proteína preferida pelo caboclo do interior, com a particularidade de que ele prefere comê-la frita, principalmente acompanhando o açaí.


No entanto, aqui é preciso fazer uma digressão sobre o atual ambiente político que vive país.


Para o leitor (e eleitor) das grandes cidades, ‘mortadela’ se tornou um nome pejorativo para chamar as pessoas que apoiam o Governo Federal, ou se beneficiam dos programas assistenciais do governo. Essa expressão parece ter origem na notícia de que, em agosto passado, o governo teria pagado lanche de pão com mortadela para quem fosse à manifestação em seu favor. Daí que a notícia da introdução da mortadela na alimentação dos beneficiários do Bolsa Família na Amazônia viesse perfeitamente a calhar para aqueles que ridicularizam os programas assistenciais do Governo Federal e aqueles que são beneficiados.


Todavia, intrigado quanto ao consumo de mortadela pelos caboclos do  Caxiuanã, resolvi tirar algumas dúvidas. Dias desses, como tinha em casa uma visita que é moradora do rio Anapu, resolvi perguntar a ela se o hábito de comer mortadela é novo para as comunidades do Caxiuanã.

Ela me veio com uma resposta ainda mais intrigante. Segundo ela, os moradores de Caxiuanã, sempre se confiaram na abundância de carne de caça, como fonte de proteína animal, por isso não comiam com frequência mortadela. Agora, a compra de mortadela na cidade seria um resultado do empobrecimento da fauna na região da Floresta de Caxiuanã. Assim, logo aquela que sempre foi uma das florestas mais ricas e intocadas de Portel, estaria vendo na atualidade o empobrecimento da sua população animal, sobretudo das espécies mais caçadas, tais como pacas, cutias, veados e tatus.

Outra conclusão que parece equivocada do estudo é afirmar que o empobrecimento da dieta do ribeirinho seria resultante do Bolsa Família, quando na realidade ela tem como causa a falta de conhecimento e os próprios costumes e crenças da população. Essa falta de conhecimento quanto ao valor nutricional dos alimentos é notória e se mostra na aversão do povo em comer frutas e verduras, que tem a população de Portel, que não vem de hoje.


A população nunca deu valor ao consumo de frutas e verduras. Mesmo na zona urbana de Portel, sempre foi abundante o número de árvores frutíferas, principalmente mangueiras, murucizeiros, goabeiras e ameixeiras. No entanto, a população não cultivavava o costume de tomar sucos de fruta natural, a não ser os sucos congelados, ou ‘chopes’ como chamados pela população. Em vez disso, era generalizado o consumo de sucos artificiais em pó, o Tang ou Ki-Suco, tão populares até os anos 1980, e fabricados por multinacionais norte-americanas.

Também no interior o cultivo de pomares e árvores frutíferas não era incentivado. Minha visita conta que quando propôs ao pai plantar goiabeiras, recebeu a seguinte resposta: “as frutas servem só pra atrair pipira (Cyanicterus cyanicterus)”.

Também o consumo de verduras e legumes sofria grande resistência por parte dos moradores. Lembro que quando pedia salada durante as refeições, um amigo sempre respondia “quem gosta de comer folha é jubuti e preguiça”.


Diferente era o comportamento quanto aos frutos das palmeiras, tais como açaí, bacaba e pupunha. Mas as frutas nunca foram vistas como boa fonte de alimento. Mesmo as mangas, tão abundantes na cidade, jamais foram colocadas no mesmo status que o açaí. Lembro que apesar de ter comido tanta manga em Portel, eu só vim a descobrir como era gostoso o suco de manga na casa de uma missionária alemã, que o servia durante as visitas. Da mesma forma procediam os americanos, que moravam na Amacol, e estavam o tempo todo dando às suas crianças mamadeiras com suco natural de frutas, fato esse que eu nunca vi por parte da população local. Apesar da abundância de frutas.


No entanto, o jornalista se mostra incapaz de saber analisar a natureza das mudanças constatadas pela pesquisadora norte-americana.


Essa incapacidade advém da flagrante falta de conhecimento do jornalista da Folha quanto aos hábitos dos moradores da Região Amazônica. Em particular um dado deixa clara essa ignorância. O texto afirma que os ribeirinhos viajam oito horas de Caxiuanã até a cidade mais próxima, que seria Breves. Mas se tivesse pelo menos buscado ver onde se localiza Caxiunã no mapa, teria visto que a cidade mais próxima é Portel, onde fica a sede do município, e não Breves.


Enfim, as transformações no modo de vida dos ribeirinhos no interior da Amazônia foram muitas nos últimos anos. Mas o jornalista se deteve num só, que ele chamou de ‘Efeito Mortadela’, expressão essa provavelmente não utilizada pela cientista em seu artigo, mas que serve ao autor para menosprezar os beneficiários dos programas do Governo Federal.


Esse raciocínio enviesado, próprio da imprensa conservadora, perde de vista algumas das transformações mais profundas pelas quais passa o ribeirinho no interior da Amazônia após a introdução do Bolsa Família.


Antes a vida do caboclo se regia pelos ditames da natureza, tal como a época de colheita do açaí, da mandioca ou a pesca do peixe. O ritmo de vida era ditado pela natureza. Mas hoje existe o “efeito começo do mês”, como diz a pesquisadora. Os ribeirinhos têm data todo início do mês para fazer viagem até a cidade mais próxima para comprar os mantimentos necessários e, a partir de então, regrá-los até o início do próximo mês. Ou seja, os caboclos assumem um ritmo de vida dos assalariados urbanos.


Existem outras transformações ainda mais profundas por que passam as comunidades no interior da Amazônia causadas pelo acesso aos programas do Governo Federal.


Desde o fim do Ciclo da Borracha, o caboclo amazônida viveu relativamente isolado do capitalismo mundial. Não produzindo nenhuma commodity de maior valor no mercado nacional ou internacional, ele se recolheu a um modo de extrativismo autônomo, em que a maior parte do que ele precisava para sobreviver vinha diretamente da natureza, cultivando apenas a mandioca, a qual, além do consumo próprio, servia como moeda de troca no escambo com os regatões.


Hoje o seu modo de vida está mudando. Até a ida à cidade não se dá mais de canoa a remo, mas sim em uma ‘rabeta’ movida a motor a óleo diesel. Seja no óleo diesel ou na fonte de proteína, os caboclos da Amazônia se encontram hoje cada vez mais dependentes do consumo de produtos fabricados pelas grandes empresas nacionais e multinacionais.


Desta forma, acontece assim a inserção do caboclo amazônida no capitalismo internacional (utilizando-se de uma expressão dos teóricos marxistas), pelo incentivo ao consumo. Ironicamente, aquele mesmo mercado que fecha suas portas aos seus produtos dos ribeirinhos, é o mesmo que aceita esses ribeirinhos apenas na condição de consumidores. Mas não na condição de produtores. O ribeirinho da Amazônia deve ser inserido no mercado capitalista apenas em condição passiva, ou seja, no papel de consumidor dos produtos dos grandes conglomerados industriais da Região Sudeste.


É esse o principal efeito do Bolsa Família na Amazônia.