segunda-feira, 30 de julho de 2018

O ÚLTIMO VÔO DE ALCIDES EVANGELISTA



Apresentação

Poucas tragédias marcaram tanto uma cidade como a morte de Alcides Monteiro Evangelista marcou Portel.
Alcides Montero Evangelista

Alcides Evangelista era filho de Portel. Seus pais eram Damião Evangelista, oriundo de uma numerosa família portelense, e Maria Monteiro, irmã de Joaquim e João Monteiro. Sidoca, como Alcides era popularmente chamado por familiares e amigos, era, portanto, primo de Wilson Monteiro e Estanislau Monteiro. Ele era, sobretudo, dono de uma personalidade carismática, que sabia se relacionar bem com todos, além de namorador e um dos melhores jogadores de futebol que Portel já viu.

Ainda jovem, foi convidado pelo prefeito Carlos Saboya para ir trabalhar na capital, em Belém. Lá ele estudou e trabalhou em diversas empresas, além de jogar em vários clubes de futebol, entre os quais o Pinheirense, de Icoaraci. Porém, passados alguns anos, ele retornou  à sua cidade natal, onde moravam os seus pais.

Após seu retorno, sua carreira em Portel teve uma rápida ascensão profissional. Na época, a 
Companhia Amazonas estava no auge do seu poderio econômico na cidade, e Alcides se tornou um dos poucos brasileiros a ocupar posição de dirigente na companhia, como gerente do escritório. Além de um bom emprego em uma empresa particular, ele logo começou uma promissora carreira política em 1970, quando foi eleito vereador. Durante o mandato-tampão do prefeito Rafael Gonzaga, ele, ele era o vice-prefeito. Em uma época em que a política ainda era dominada pelo acordo de cavalheiros, Alcides Evangelista era cotado para ser o próximo prefeito.

Alcides Monteiro era aos 32 anos, portanto, uma pessoa com um futuro promissor à sua frente, um filho exemplar e um cidadão que trazia muitas esperanças a seus conterrâneos. Ele era o próprio exemplo do filho pródigo que à casa volta.

Naquele carnaval de 1972, Alcides planejou passar o feriado com a esposa e as duas filhas em Salinas, acompanhado do então prefeito Rafael Gonzaga, que já se encontrava no balneário. Em vez de pegar o barco de linha, como era normal, Alcides preferiu ir em um avião da TAL (Táxi Aéreo Londrinense), empresa que na época fazia escala aérea em Portel no percurso para a cidade de Altamira, que se encontrava então no auge da construção da rodovia Transamazônica.

O avião da TAL, de prefixo PP-AMN, era um monomotor modelo Piper PA-28 Cherokee, com quatro lugares para passageiros, mais um lugar para piloto e um assento ao lado do piloto usado para mais alojar mais um passageiro. Era um modelo de avião amplamente utilizado como taxi-aéreo na região até hoje. O piloto da aeronave era Heitor Bacellar, com dez anos de experiência em voos na Amazônia, ele era filho do comandante da aeronáutica, Huet de Bacellar.

Quando pousou em Portel, naquela manhã de sábado, dia 12 de fevereiro, o avião da TAL chegou com três passageiros a bordo. O advogado Wilson Velasco, o médico Manoel Gladson Pipolos e o comerciante Otávio Augusto Nery. Manoel Pipolos trabalhava para a construtora Mendes Júnior em Altamira, quando sofreu um acidente em um veículo da empresa, ele se encontrava a caminho de Belém para tratamento de ferimentos. O comerciante Otávio Augusto Nery era proprietário de embarcações que faziam frete de Altamira para Belém. Nesse dia, tendo alguns assuntos a resolver na capital, ele preferiu pegar um avião e adiantar seus empregados por barco para encontra-los depois em Belém.

Em Portel, o passageiro Domingos Simões chegou para embarcar no avião em cima da hora. Uma vez que a lotação máxima já estava completa e o piloto se recusava a deixar o passageiro embarcar, Domingos Simões insistiu com o piloto, reclamando que já tinha comprado a passagem. O piloto concordou em embarca-lo, desde que deixasse as bagagens. Domingos Simões viajou sentado entre as poltronas.

O outro passageiro que embarcou em Portel foi a odontóloga Dalva Patriarca. Filha do desembargador Eduardo Patriarca, presidente do Tribunal Regional Eleitoral do estado do Pará, Dalva havia presidido o diretório da Faculdade de Odontologia, em Belém, onde ela promoveu cursos de assistência gratuita a moradores de baixa renda. Mesmo com toda oportunidade de seguir carreira em Belém, ela preferiu montar consultório particular em Portel, onde estava morando. Aos 27 anos de idade, Dalva era uma morena alta, corpulenta e muito simpática.

Alcides Monteiro embarcou no avião e se sentou no banco de trás, do lado direito, ao lado de Domingos Simões. Dalva Patriarca se sentou na primeira fileira, junto à janela do lado direito. O médico Manoel Pipolos se sentou ao meio, entre o advogado Wilson Velasco e Dalva Patriarca. O comerciante Otávio Augusto Nery estava sentado ao lado do piloto.


Jornal A Província do Pará noticia a tragédia.


Comunicação com a torre comando

Quando o avião da TAL decolou de Portel às 12:20 horas daquele sábado, 12 de fevereiro de 1972, a chuva ominosa já começava a cair sobre o campo de aviação em Portel. Era um mês de fevereiro de Carnaval com chuvas acima do normal.

O carnaval seria dia 15 de fevereiro, o avião partiu no sábado, dia 12.
Passada uma hora de vôo, o piloto comunica à torre de comando em Belém que enfrentava um forte temporal, e que e que não conseguiria chegar a Belém. Naquela tarde, a torre de comando no aeroporto Valdecans registrou a seguinte comunicação com o avião PP-AMN da TAL:
13:10 h – O piloto comunica que passava por forte temporal. Ele tentaria retornar a Portel.
13:27 h – O piloto comunica que, devido a tempestade, não conseguira pousar em Portel e que, naquele momento, sobrevoava um rio, fazendo voltas para identificar o local.
14:00 h – Informa que estava ficando sem gasolina.
15:39 h – Informa à torre de comando: “Nada mais podemos fazer. Vamos fazer a aterrissagem e já estamos com as portas de emergência destravadas”. O controlador de vôo respondeu: “boa sorte”.

Manchete do jornal O Liberal.

As Buscas

No sábado, ninguém das famílias ficou sabendo do acidente. Eles ficariam sabendo do acontecido só no domingo de carnaval. Na segunda-feira, os jornais noticiavam “filha do desembargador Patriarca está desaparecida em vôo para Belém”. Era uma segunda-feira de feriado de carnaval. Em Belém os foliões se reuniam para o desfile das escolas de samba na Avenida Presidente Vargas. Mas, para as famílias que se reuniam no aeroporto de Valdecans para saber de seus parentes desaparecidos, o carnaval era de agonia. Ninguém sabia do paradeiro do avião.

Imediatamente a aeronáutica montou uma verdadeira operação de guerra para resgate do avião e salvamento dos passageiros. Sete aviões foram empregados nas buscas: um Hércules Lockheed C-130 da Salvaero, dois catalinas, dois aviões da TAL e mais um avião de uma empresa particular. A Companhia Amazonas também disponibilizou seus aviões para ajudar nas buscas. Os aviões voavam em formação varrendo cada metro quadrado de florestas e rios tentando localizar vestígios do acidente. A região de buscas cobria os municípios de Moju, Igarapé-Miri, Cametá, Abaetetuba, Oeiras do Pará, Breves, Altamira, Curralinho e Anajás. Nada era encontrado.

Passou-se sábado, domingo, segunda-feira, terça-feira. Nenhuma notícia do acidente ou de sobreviventes.
Jornal com noticia das buscas ao avião.


Em uma época em que as estações de rádio ainda dominavam as notícias, todos se grudavam aos aparelhos de rádio para saber informações. Os boatos vinham de todas as partes.
Uma pessoa se identificou como o prefeito de Altamira ligou para o desembargador Eduardo Patriarca e comunicou que as sete pessoas estavam salvas e a caminho de Belém. Outra pessoa chamou a filha de Otávio Nery e falou que seu pai havia ligado para o Posto Vasconcelos, no Porto da Palha em Belém, dizendo que tudo estava bem. A filha se deslocou para o posto, mas tudo não passara de informação falsa. Outro boato chegou ao escritório da TAL em Belém por telegrama, enviado pela firma Mendes Júnior, que atuava na construção da Transamazônica. Segundo o telegrama, o avião teria pousado em um rio, em Igarapé-Miri, todos os passageiros teriam sobrevivido e estariam vindo de barco para Belém. A TAL enviou um avião para aquele município, onde, novamente nada foi constatado.

O diretor da TAL, José Rodrigues dos Santos, se mostrava muito irritado com o noticiário que uma das rádios locais dava, afirmando que estas notícias falsas prejudicavam bastante o serviço de salvamento.

Em Portel, as falsas notícias trouxeram alegria e decepção para os familiares de Alcides Evangelista. Seu Damião, pai de Alcides Monteiro, era proprietário de um pequeno bar, a “baiúca do seu Damião”, como se dizia, lá ele ouvia ansiosamente o rádio à espera de boas notícias.  Em um primeiro momento anunciaram que o avião havia sido achado e todos os passageiros estavam vivos. Houve festa no bar do seu Damião, rodadas de cerveja e cachaça foram distribuídas gratuitamente aos que estavam presente. Porém, logo depois vieram notícias afirmando que haviam sido dadas notícias falsas, que, na realidade, nenhum passageiro havia sido encontrado. O silêncio e a tristeza se abateram novamente sobre o bar do seu Damião, e sobre a cidade.

O Acidente

Pouco antes da última comunicação com a torre, às 15:39 horas do sábado, o piloto Heitor Bacellar percebeu uma falha na bomba de combustível do avião. A bomba simplesmente parou, deixando de bombear combustível do tanque para o motor. Sem saber onde estava voando, ele começou a procurar um local para pousar com segurança, quando avistou um rio. Ele informou à torre que tentaria pousar no rio, mas, quando se preparava para pousar, a bomba voltou a funcionar e ele, então, tomou a decisão arriscada de arremeter e tentar voar até a pista de pouso mais próxima. Ele tomou essa decisão em razão de vários passageiros não saberem nadar. Poucos minutos depois, no entanto, a bomba de combustível volta a falhar e ele então decidiu pousar em uma clareira.

Ele avisou todos os passageiros de que teria de fazer um pouso de emergência. Não houve desespero no avião. Todos demonstravam coragem. Apenas Dalva Patriarca deixou transparecer nervosismo, quando começou a fumar cigarro um após o outro. No momento em que se preparava para pousar, a asa direita do avião bateu contra uma árvore, partindo ao meio e cuspindo o passageiro Wilson Velasco para fora da aeronave. O avião então embicou e se espatifou em cheio contra o chão. O avião caiu a cinco quilômetros de distância da margem do rio Anajás. O local da queda ficava distante da cidade, em um local de difícil acesso, cerca de dezessete minutos de avião e mais três horas de barco.

Com o choque, Alcides Evangelista, Domingos Simões e Otávio Augusto Nery morreram na hora.  O avião Cherokee se tornou um monte de ferro retorcido.

O advogado Wilson Velasco, ao ser cuspido do avião, salvou-se milagrosamente, apenas com um corte profundo na cabeça, o qual sangrava muito. Ao acordar-se, sem saber como havia saído do avião, ele viu que o piloto Heitor Bacellar estava vivo, e tentou retirá-lo do meio das ferragens, uma vez que a asa direita encontrava-se por cima do piloto. Liberado o piloto, os dois sobreviventes perceberam que o médico Manoel Pipolos também estava vivo.  Eles tentaram acordar o médico, que despertou em estado de choque, gritando: “eu quero uma ambulância, remédios, primeiros socorros!”. 



Dalva Patriarcha, ao centro, junto à família.
Dos demais passageiros, apenas Dalva Patriarca também estava viva, porém desacordada. Ela respirava, murmurava algumas palavras e gemia intercaladamente.

Perdidos na selva, feridos e sem alimento, a situação era desesperadora. Manoel Pipolos tomou de um revolver que levava na bagagem e tentou o suicídio. “Se é para morrer, melhor morrer logo!”, gritou ele. O piloto e o advogado tomaram a arma da mão dele e procuraram acalmá-lo, prometendo que todos sairiam salvos. Carregando o médico ferido pelos ombros, o piloto e o advogado rumaram em direção ao sol poente, procurando sinais de civilização. Mas logo o médico, desistiu. Não tinha condições de seguir adiante. Seria melhor se os dois buscassem socorro sozinhos, ele ficaria esperando junto ao local do acidente. Wilson Velasco e Heitor Bacellar então improvisaram uma cama de folhas e galhos de árvore e, como mantimento, deixaram uma lata de água potável e um saquinho de castanha do pará, que haviam encontrado junto às bagagens do avião.

Durante o restante do sábado até o domingo, Wilson Velasco e Heitor Bacellar andaram pela mata sem encontrar sinais de civilização. Os dois dormiram à noite encostados ao tronco de uma árvore, sob a chuva incessante. No domingo, desanimados, os dois decidiram voltar ao local do acidente. Quando retornaram Dalva Patriarca já estava morta. Manoel Pipolos sobreviveu comendo as castanhas encontradas no avião. Quando elas acabaram, ele começou a comer gafanhotos. A situação ficava cada vez mais desanimadora. Com a sua experiência, o médico diagnosticou que havia sofrido um enfisema pulmonar, além das fraturas nas pernas. Na segunda-feira, o piloto e o médico voltaram novamente ao local do acidente. A impressão é que eles estavam andando em círculos na floresta. Ao retomar as buscas, os dois decidiram, porém, tomar a direção contrária, rumo sol nascente.

Destroços do avião em que morreu Alcides Evangelista.

Na terça-feira de manhã, fazia já três dias que os dois estavam andando famintos na floresta, sem um rumo certo, e sem encontrar sinais de civilização. Desta vez porém, finalmente os dois viram algo diferentes: sinais de cortes de machado em troncos de árvore e trilhas de arraste de tronco de árvore pelo chão. Wilson Velasco havia trabalhado como advogado de madeireiras, e conhecia bem o processo de extração. Era sinal de que havia gente por perto. O piloto nesse momento lembrou-se do revolver que havia tomado do médico Manoel Pipolos, decidiu dar tiros para o ar e gritar por socorro, como forma de chamar a atenção.

Piloto Heitor Bacellar. Para os sobreviventes, ele foi um herói. Para as família dos mortos
ele foi um dos culpados, ao decidir não pousar o avião no rio Anajás. 
Foi então que os dois sobreviventes foram encontrados por um grupo de caboclos, próximo à serraria Arunã, na vila de Porto Alegre, nas margens do rio Anajás. Os caboclos, comandados pelo senhor Simeão, dono de um regatão (barco usado para venda de mantimentos), haviam ouvido a queda do avião, e também procuravam os sobreviventes. Ao ver que um caboclo carregava peixes, o advogado Wilson Velasco, arrancou os peixes da mão do caboclo e tentou comê-los cru mesmo, tamanho o desespero e a fome. Os caboclos acalmaram os dois levaram-nos para a serraria. Em seguida, seguindo as indicações dadas, foram até o local do acidente e resgataram o médico Manoel Pipolos, carregando-o em uma rede atada a uma vara de madeira. Os corpos dos quatro mortos também foram transportados até a vila de Porto Alegre. A notícia de que pelo menos dois estavam vivos chegou na quarta feira às 11:00 horas da manhã ao aeroporto Valdecans, onde se concentravam as operações salvamento. Do rádio da serraria Arunã, foi comunicado à FAB (Força Aérea Brasileira) que os sobreviventes do avião PP-AMN da Táxi Aéreo Londrinense haviam sido encontrados.
Diante da dúvida de quando chegaria o socorro, e do adiantado estado de decomposição dos corpos, os caboclos decidiram enterrar os mortos ali mesmo no cemitério da vila de Porto Alegre.

Em Belém, na terça-feira, o comando de operações de salvamento aéreo, sob as ordens do coronel Rodopiano Barbalho, assim que recebeu informações do local do acidente, começou o planejamento dos procedimentos de resgate. O local era de difícil acesso. O pouso no rio Anajás só era possível com aviões catalina. E as chuvas incessantes no período só faziam dificultar os para a região. Assim, a equipe de salvamento aéreo só chegou à vila Porto Alegre na quarta-feira de manhã, em um avião catalina pilotado pelo comandante Huet de Bacellar, pai do piloto Heitor. Dado o estado de saúde do médico Manoel Pipolos, ele foi primeiro transportado para o hospital de Anajás. O advogado Wilson Velasco e o piloto Heitor Bacelar foram transportados para Belém. Os corpos dos mortos só seriam transferidos para Belém após exumação.

Fim da Angústia

Quando o médico Manoel Pipolos chegou a Belém na quinta-feira, acabou-se a esperança dos parentes que esperavam que seu ente querido estivesse entre os sobreviventes. A irmã de Dalva Patriarca não aguentou a dor e desmaiou.  O pai de Dalva, Eduardo Patriarca, com problemas no coração, havia sido retirado do aeroporto na segunda-feira e foi mantido em casa isolado, sem ser informado da confirmação da morte da filha.
Jornal Folha do Norte com notícias da tragédia.
Seu Damião Evangelista, pai de Alcides, chegou a Belém na sexta feira ao meio dia, junto com outros altos executivos da Companhia Amazonas, num avião fretado pela companhia. No mesmo dia, à tarde, chegaram ao aeroporto Valdecans em Belém as urnas com os corpos dos mortos. Seu Damião, diante da urna com o corpo do filho, fez apenas um pedido aos soldados, que abrissem a urna para que pudesse ver o corpo. Em estado de negação e choque, ele murmurou apenas “Não reconheço meu filho assim”. O corpo de Alcides Monteiro Evangelista foi reconhecido pelas roupas que usava no dia do acidente.

O corpo de Alcides Monteiro Evangelista foi enterrado em Portel num sábado, uma semana após sua morte. Uma multidão foi ao cemitério acompanhar o enterro. Muitos continuavam sem acreditar em sua morte. Seu Nivô, o vigia das praças, ao lhe falarem o Sidoca havia morrido, não acreditou na notícia. Quando lhe disseram que a rádio havia confirmado a notícia, ele respondeu: “A rádio mente!”.


Desembarque dos corpos em Belém.



Caixão com o corpo de Alcides Evangelista embarca para ser enterrado em Portel.

À família de Alcides Monteiro ficou apenas o seguro de cinquenta mil cruzeiros, pago pela seguradora, e muitas lembranças. Nas eleições seguintes, no ano de 1974, o senhor Othon Fialho foi eleito prefeito, para o seu segundo mandato. A Companhia Amazonas mudou o nome para Amacol e a partir de então começou uma política de só contratar norte-americanos para os postos de chefia. Demoraria mais de vinte anos para que um portelense ocupasse na companhia um cargo de comando. Mas aí então a companhia não era mais da Georgia Pacific. Muito se pode especular se Alcides Evangelista continuasse vivo, hoje aos 76 anos de idade. Naquele último voo, em um sábado de carnaval, muitos sonhos ficaram para trás.

segunda-feira, 21 de agosto de 2017

POR QUE NÃO COMEÇAMOS PELAS TARTARUGAS?


Tartaruga marinha verde, semelhante a que encontrei na praia de Salvaterra. (Foto: Projeto Tamar)

Dia desses minha namorada lembrou que mês que vem de setembro começam as tartarugas a se reproduzir nas praias de Melgaço...

Eu nem tinha conhecimento que as grandes tartarugas da Amazônia se reproduziam nas praias de 
Melgaço. E, se elas se reproduzem em Melgaço... devem se reproduzir nas praias de areia branca de Portel também... E logo me veio à cabeça aquele espetáculo de centenas, milhares de pequenas tartarugas correndo na areia, procurando as águas do rio. Nunca tinha ouvido falar desse espetáculo da natureza em Portel. Mas esse espetáculo ocorria, e não faz tanto tempo atrás...

Lembrei-me de um episódio que aconteceu comigo quando estava na Pousada dos Guarás, localizada à beira da Praia Grande, em Salvaterra, no Marajó. Eu trabalhava no turismo receptivo da pousada em Belém, e estava em Salvaterra para acompanhar algum serviço por lá. Era uma noite de sábado monótona e eu trocava conversa com o gerente Zé Luís na recepção, aguardando a troca de turno do recepcionista da noite, que estava atrasado para o trabalho. De repente veio um empregado da pousada à recepção, cansado, quase afônico, falando que o recepcionista havia encontrado algo incrível quando vinha pela praia e precisava de ajuda, pediu então para levarmos um carro de mão. Eu segui andando pela areia, esperando encontrar algo fantástico, uma cobra grande, uma sereia, um extraterrestre... Quando cheguei, o recepcionista havia encontrado uma tartaruga marinha na areia.
A tartaruga marinha era enorme. Nunca havia visto pessoalmente um animal daqueles. Ela tinha a cabeça cônica e pontuda, típica da espécie, era toda esverdeada na cabeça e no casco, de um verde marinho vivo, e nas partes de baixo, pescoço e nadadeira, ela era branca. Essa espécie chega a medir quase um metro e meio de comprimento da carapaça e pesar até 170 quilos. Eram essas mais ou menos a medida daquela que via ali na minha frente.

Colocamos nós três com muito o esforço o animal no carrinho de mão e levamos até a pousada. Os rapazes não se calavam de tanta empolgação. Quantos anos um animal daqueles não era visto por ali! Haviam ouvido apenas os antigos falarem dele na região. Imagina quando mostrassem aos outros! E que gostoso não ficaria um animal daqueles na panela! Dava uma sopa enorme!

Na falta de um local melhor, deixamos o animal na recepção mesmo, observado pelo recepcionista de plantão. Eu fui para o meu quarto me deitar. Mas do quarto, ouvia a tartaruga se debater na recepção, tentando encontrar um caminho para a água. Comecei a pensar como era raro encontrar uma tartaruga marinha no Marajó, quantos milhares de quilômetros aquele animal não havia nadado, se livrado de redes e predadores para tentar botar seus ovos ali na Praia Grande, até ser pego pelo predador homem. E lá eu ouvia a tartaruga se debatendo no chão da recepção. Seu pescoço arfando lembrava o pescoço de um ser humano branco e gordo, cansado e com dificuldade de respirar. Não consegui dormir. Decidi que era hora de salvar aquele animal.

Cheguei com o recepcionista e dei a ordem: “Edmilson, me ajuda a colocar a tartaruga no carrinho de mão que nós vamos soltar esse animal!”. “Mas como!” respondeu ele. “O que vai falar o pessoal amanhã de manhã?!”. Eu expliquei melhor a ele: “olha, esse é um animal protegido pela legislação. Amanhã um dos hóspedes vê essa tartaruga em cativeiro aqui, ou pior, vê que nós matamos uma espécie rara, ele vai denunciar no IBAMA (órgão de proteção ambiental) e nós vamos responder por um crime. E ainda vamos aparecer na televisão como uma pousada, que se diz ecológica, mas que mata animal ameaçado de extinção”. Ele me ouviu contrariado, mas admitiu a contragosto “é...”.  Carregamos o animal no carrinho de mão até a areia onde o soltamos. Observei como a tartaruga quase não tinha forças para entrar na água, até que foi devagar e desapareceu em meio às ondas. Voltei pra pousada pensando “a coitada foi embora e nem sequer conseguiu botar os ovos...”.

No mesmo dia, ainda nem havia levantado o sol, fui acordado em meu quarto com uma batida insistente na porta: “onde estava a tartaruga?!”. E lá fui eu mais uma vez explicar a situação, não podíamos matar um animal daqueles na pousada. A revolta foi geral, me livrei por pouco de ser linchado pelos colegas de trabalho, não fosse eu, de certa forma, um superior hierárquico a eles. O gerente do restaurante dizia: “como eu podia fazer isso? um animal daqueles ia dar para servir vários dias no restaurante!”. Outro ainda dizia cinicamente que o objetivo não era matar, mas sim amarrar o animal a um fio e soltar na lagoa, para mostrar para os turistas. Como pode um animal marinho viver em uma lagoa de água doce? Quanta ignorância, a maioria não negava que o objetivo verdadeiro era matar e comer o animal. Não importava quão raro ele fosse. O prazer mesmo era exterminar um animal raro. Fiquei impressionado com tamanha voracidade.

Lembrei desse fato quando ouvi que as tartarugas da Amazônia estavam para começar a postura de ovos nas praias de Melgaço. A maioria delas não escapará da panela. Houve uma época, não tanto tempo atrás, em que as tartarugas marinhas procuravam as praias do Marajó para por os seus ovos, provavelmente também nas praias de Mosqueiro, Outeiro, entrando pelo rio Pará. Hoje ninguém mais ouviu falar dessas tartarugas marinhas. Da mesma forma, há algumas décadas atrás as tartarugas da Amazônia ainda procuravam as areias da praia do Arucará para por seus ovos. A postura de ovos pelas tartarugas é uma festa da natureza, as milhares de tartaruguinhas quando nascem oferecem um banquete para diversas espécies de aves, jacarés, e outros animais. Proteger as tartarugas é garantir a sobrevivência de inúmeras outras espécies.  Hoje a população nem ouviu falar de tartarugas nas praias do Arucará. Imaginei se alguma, seguindo seus instintos, chegasse até a praia, como não demoraria nada a surgir o predador homem para pegá-la, matá-la e levá-la à panela.

As pessoas na Amazônia matam os animais não só por necessidade de alimentação, matam também por um prazer primitivo, irracional de devorar um animal de caça, quando não pelo próprio prazer de matar. Ato esse que vem, não do índio, que tira da natureza apenas aquilo que precisa para sua alimentação, mas sim dos nossos antepassados nordestinos, que chegaram  à Amazônia desde meados do século XIX para extrair borracha. Era um desespero de quem saiu de uma região seca e se encontrou então em um novo meio, rico em fauna, e sentiu prazer em matar só pra provar o novo alimento. Podendo ter vindo igualmente do colono português, em sua ânsia voraz de dominar a natureza selvagem.

Meu avô, que era nordestino e veio do estado do Rio Grande do Norte, contava que certa vez no interior, estava um bando de dezenas de capivaras a atravessar o rio Pacajá. Seus vizinhos não se satisfizeram até matar todas, todas. Muito mais do que precisavam para matar a fome. Hoje as capivaras já há muito desapareceram dos rios de Portel, juntamente com as antas e outros animais de grande porte. Mesmo destino que tiveram as tartarugas da praia do Arucará.

Tartarugas da Amazônia pondo ovos em praia na reserva de Abufari, estado do Amazonas. (Foto: www.blogdotiao.com)


Hoje em dia, em muitas áreas de Portel, esta dizimação da fauna já chega um a ponto crítico. Em muitas localidades a população já começoua substituir a alimentação tradicional por alimento industrializado. É hora de rever essa relação com a natureza. É mais do que hora de sair de uma relação puramente predatória para uma relação de respeito. O domínio da natureza deve ser feito não pela depredação, mas sim pelo conhecimento. É grande o potencial de geração de renda pelo manejo de população de animais selvagens. Em vez de matar, deveríamos manejar. Que tal se, em vez de ficarmos na cidade, saíssemos para o interior para conhecer os hábitos de reprodução das cutias, seus habitats, que tal catalogarmos as populações de macacos guaribas, conhecermos seus comportamentos? E fazer isso não só de curiosidade, mas registrar essas informações e dados?

A melhor forma de se apropriar de uma região é conhecer sobre ela. Se os portelenses quiserem tomar conta do seu município, vão ter que produzir conhecimento sobre sua terra. Só aprende a valorizar quem conhece. A criação e reprodução de animais selvagens em cativeiro ou em áreas monitoradas pode gerar renda através da culinária, com o prato típico do jabuti na castanha, desta vez criado em cativeiro, por exemplo. Pode também gerar renda através do turismo ecológico, turistas pagam uma grana para ver capivara e jacaré em fazendas do Marajó, poderiam também pagar para vê-los em Portel.

Tanta gente em Portel reclamando da falta de oportunidades, por que não começam projetos para registrar e manejar a fauna?

Quando se faz essa pergunta a um portelense logo vem a resposta pronta: “aqui não dá certo”. Portel 
é a cidade em que todo mundo sabe que nada dá certo, muito embora ninguém tenha sequer uma vez tentado. Se pensassem da mesma maneira na Bahia, o projeto Tamar nunca teria dado certo.
Essa relação sustentável e amigável com a fauna poderia se expandir para outras áreas, para a agricultura, para a geração de alimento, para a piscicultura. Poderíamos tirar o município da miséria e ainda servir de exemplo. Tudo depende de iniciativa.


Mês que vem as tartarugas procuram as praias para botar seus ovos, por que não começamos a proteger as tartarugas?

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

O BAILE DA MUSA VERÃO 2017

Gerusa Balieiro desfila para os jurados

Neste último sábado, dia 29 de julho, a prefeitura realizou a 29ª edição do tradicional Baile da Musa Verão.  A cidade padece com os atrasos frequentes no pagamento dos salários do funcionalismo público, e com o atendimento pela agência do Banco do Brasil, a principal das duas únicas agências de banco num município, onde o acesso da internet é restrito e precário. Não basta a prefeitura atrasar os salários, quando paga, muitas vezes a agência do Banco do Brasil não tem dinheiro, ou não se encontra aberta em horário adequado para atender o público. A situação se agravou tanto que alguns comerciantes procuram realizar uma audiência com a presença do Ministério Público para resolver o problema. Mas essa tentativa até agora não logrou atrair interesse da população, ou do prefeito.

No entanto, nenhum desses fatos, ainda que da maior importância, merece tamanha atenção como a escolha da musa do verão portelense.

A prefeitura, disposta a transformar a coroação da musa no auge da programação das férias de julho, investiu na realização do baile. Em vez da motoneta Honda Biz dos anos anteriores, este ano a prefeitura comprou para a vencedora uma moto cross Honda NXR 160 cc Bros nova. Moto que custa mais de R$ 11.000,00, prêmio esse que é o sonho de qualquer garota da cidade. Deste modo, o baile da Musa Verão 2017 deveria coroar a programação de férias de uma administração até agora sem brilho, sem realizações e sem inaugurações entregar para a população.

Desta vez, a festa voltou a ser realizada na sede do tradicional clube de futebol Camel, local onde era originalmente realizado o baile há mais de vinte anos atrás. No ano, o baile ocorreu no estádio Felizardo Diniz, este bem mais amplo e com maior público, mas sem as características de um grande baile. No ano passado o local escolhido foi a arena fechada em frente à praia, que tantas críticas gerou ao então prefeito por parte da oposição, que o acusava de “privatizar” a praia. Com a volta do baile ao seu antigo local de origem, era minha esperança que o baile voltasse a ter o glamour de antigamente. No entanto, se no passado a festa guardava um certo glamour, com a sede social ricamente decorada pelo José Maranhão, e o público elegantemente vestido a caráter para a ocasião, no melhor do traje social, desta vez a sede não tinha nada de decoração para a festa, e o público já não se traja mais com a elegância de duas décadas atrás.

De decoração feita pela SECELT (Secretaria de Cultura, Esporte, Lazer e Turismo) mesmo, apenas um enorme palco de quase dois metros de altura, que serviu só para dificultar a visão do desfile e afastar ainda mais as candidatas do público. No passado elas desfilavam no salão de danças, em meio ao público, não precisava de palco especialmente construído para a ocasião. Só pela construção do palco a prefeitura teria pagado uma pequena fortuna, sendo que o palco serviu apenas para o desfile das candidatas, o show das bandas aconteceu no próprio palco do clube. Presentes à festa estavam, além do secretário da SECELT, o vice-prefeito, o próprio prefeito, e o convidado especial, o deputado comunista Lélio Costa. A expectativa da premiação era grande.

Durante as semanas que antecederam à festa, o novo prêmio para a vencedora do concurso atiçou a imaginação da população. Segundo os boatos, o novo prêmio já teria uma vencedora certa: a suposta candidata-amante de um comerciante ocupante de um cargo de alto escalão na prefeitura. Nas redes sociais, perfis falsos espalharam que o resultado do concurso já estaria decidido. A festa seria apenas uma encenação para a entrega de presentes a amantes, pagos com o dinheiro público. Em uma cidade em que os boatos surgem a cada esquina, e ainda mais em uma administração marcada por escândalos e fofocas, os rumores rapidamente ganham ares de verdade.

O suposto descaramento da intenção logo causou indignação e ciúmes. As meninas jogadoras da seleção de vôlei do município, que recentemente trouxeram um troféu para casa, mas que receberam uma premiação muito aquém daquela oferecida à musa, logo reclamaram a desvalorização do esporte. Para o povo estava claro, para a prefeitura mais vale a mulher mostrar o corpo.

Para aumentar ainda mais as suspeitas, desta vez a SECELT preparou uma sessão de fotos para apresentar as candidatas ao público. Ótima a ideia no princípio, o resultado foi que o ensaio fotográfico foi francamente desfavorável algumas candidatas, enquanto pareceu favorecer umas outras. As candidatas foram fotografadas sob sol a pino, e algumas a uma certa distância, erros primários até para um fotógrafo iniciante. Além do mais, as fotos, desfavoráveis a algumas candidatas,  serviram só de munição para que alguns mal intencionados fizessem  zombaria e chacota das garotas em redes sociais, numa clara demonstração de falta de respeito ao espírito do concurso. Questionados eram os critérios de escolha das candidatas, quando não a própria falta de seriedade do concurso.

As candidatas desfilam diante dos jurados.

Tais questionamentos não são novos. No ano passado ocorreram após a escolha do Garoto Verão. Mas agora, dada a propaganda e a preparação feita pela prefeitura, a polêmica foi crescendo até o dia do baile. De modo que, no grande momento, todos estavam preparados. A sede social do Camel em si, embora não estivesse completamente lotada para a festa, encontrava-se fervilhando. Alguns amigos e parentes, para torcer para suas candidatas, trouxeram faixas e cartazes, formando uma verdadeira torcida organizada. E a maioria, se não torcia por uma candidata específica, estava francamente contrária a uma candidata, a suposta amante do alto funcionário da prefeitura.  E não somente torcia contra ela, mas estava preparada para acabar com a festa, caso o boato se tornasse realidade.

Anunciados o terceiro e segundo lugar, a expectativa era grande para o anúncio da vencedora. Segundos antes do grande anúncio, como uma artilharia em guerra, pronta para o ataque, ouvia-se os alertas, “preparar as latinhas de cerveja” e “os baldes de gelo estão prontos”... Na hora, o anúncio de que Tássia Paes era a vencedora veio como um alívio e um anticlímax para a turma que veio pronta para estragar a festa.
Tássia Paes é coroada Musa Verão 2017.
Gerusa Balieiro não poderia ser musa, não seria musa. Muito embora tivesse os atributos estéticos, não tinha a simpatia do público. Os boatos espalhados nas redes sociais minaram seu apoio junto ao público. Se vencesse, ganharia a moto mas viveria uma grande vergonha, senão agressão pública.

Durante as semanas, perfis falsos nas redes sociais espalharam o boato de que ela seria amante de um figurão de alto escalão na prefeitura, e que o concurso já estaria todo armado para que ela ganhasse o prêmio. A politização do concurso da Musa Verão fez com que o desfile se tornasse mais do que uma escolha da beleza. As suspeitas lançadas sobre a administração municipal recaíam sobre ela mesma. Perfis falsos e boatos espalhados por pessoas que se dizem de bem acabam com uma reputação e podem estragar um momento que deveria ser dos mais lindos.

Depois que todos respiraram aliviados, o vice-prefeito Evandro, o prefeito Manoel Maranhense e o deputado Lélio Costa puderam discursar calmamente para uma plateia que, se não aplaudiu, também não deu em ninguém um banho de cerveja e de baldes de gelo.


Terminado o mês de julho, passadas as férias, a população volta à sua mesma preocupação: se o salário pago pela prefeitura não vai atrasar, se a agência do Banco do Brasil não vai fechar, se os caixas vão ter dinheiro... Mas nada, nada gera tanta atenção do cidadão portelense como a escolha da Musa Verão.

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sábado, 16 de abril de 2016

ESTRADA DE PORTEL: APOGEU E ABANDONO

Sr. Estanislau na estrada observa o terreno do seu sítio coberto pelo lixo jogado pela prefeitura.

Em meados do século passado, uma leva de maranhenses migrou para o interior de Portel. Eles teriam uma importância vital em um dos marcantes empreendimentos da história da cidade.

Aqueles primeiros maranhenses eram de melhor situação social ou econômica e acabaram abrindo caminho para a vinda de muitos outros. Entre esses pioneiros estavam nomes como Benedito Carvalho, Waldemar Franco, Chico Costa, Doda e Antônio Vieira (o seu Antônio Zomba como é mais conhecido), entre outros. Muitos desses encontraram terras no interior, tal como o velho Carvalho, que se estabeleceu inicialmente no Catispera, rio Pacajá.

Depois desses primeiros, houve uma verdadeira migração de maranhenses para Portel. Estes últimos já não tinham a mesma origem social que os primeiros. Eram de condição econômica bem menos favorável, e migraram para Portel seguindo uma verdadeira epopeia. Eles vieram do Maranhão, como diziam pejorativamente os portelenses da época, “por debaixo do fio”, seguindo o caminho da ferrovia. Eles atravessaram a nado o rio Gurupi, que divide o estado do Pará do vizinho Maranhão, nus carregando as trouxas nas costas. Já no Pará, seguiram a pé o caminho dos trilhos da Estrada de Ferro Belém-Bragança para chegar a Belém e depois continuar a viagem de barco até Portel.
Essa segunda leva de maranhenses já não encontrou terras no interior, não seguiram o curso das águas, para o alto dos grandes rios. Em vez disso, eles abriram caminho por terra, no que depois seria a estrada de Portel.

Foram aqueles maranhenses, que abriram picada na estrada que ia da cidade até o quilômetro dez. Na verdade, a estrada de Portel, para ser justo à história, deveria ser chamada de “estrada dos maranhenses”, em lembrança àqueles primeiros imigrantes, que lá chegaram ainda na década de 1960. Como prova, até hoje ainda existe por lá a Vila dos Maranhenses. Ali, foram os parentes do seu Antônio Zomba, em grande parte, que abriram caminho a terçado da estrada até quase o quilômetro dez.

Na cidade, nem sempre essa segunda leva de maranhenses era vista com bons olhos. Conta-se que o prefeito Ladislau Queiroz não gostava daqueles audaciosos maranhenses que vieram “por debaixo do fio”. Mas, outros já viam o aproveitamento daquela mão de obra recém-chegada como o uma boa oportunidade para o futuro de Portel.

Assim, ali sentado por detrás do balcão de sua farmácia, o comerciante Felizardo Diniz, ele próprio um pernambucano, discorria com amigos e fregueses sobre suas preocupações com o futuro de Portel. “A cidade não podia depender só da Amacol”, dizia ele. Na época, a multinacional exportadora de laminados e compensados estava no auge do seu poderio, empregava diretamente mais de mil pessoas no município, que construíram a cidade em volta da fábrica. Parecia até um desatino falar que a cidade não poderia depender só da Amacol. “O município tem que ter agricultura”, dizia o seu Felizardo.

Quando se elegeu prefeito, para o mandato de 1978 a 1982, Felizardo Diniz cuidou de por em prática os seus planos. Ele idealizou e implementou um grande projeto de assentamento agrícola, demarcando lotes de duzentos e cinquenta metros de frente por mil metros de fundos (área de 25 hectares), que ele distribuiu aos agricultores portelenses, em verdade, grande parte vindos do Maranhão. Felizardo Diniz abriu a estrada até o quilômetro dez, e seguiu adiante, abrindo para o trânsito de veículos até o quilômetro quarenta e sete. Esse era o verdadeiro início da estrada Portel-Tucuruí, um genuíno sonho de saída do isolamento dos portelenses.

Quando criança, eu conheci toda a realidade daquela epopeia nascida dos sonhos do prefeito Felizardo Diniz e dos braços dos maranhenses. Era a coisa mais empolgante.
Até o quilômetro dez, a estrada era ladeada por uma sequência de sítios, todos produtivos e muito bem cuidados.

A estrada em si antes começava no próprio campo de aviação (hoje rua da Vivência), e não passava de um caminho ladeado na direita pelo terreno da Amacol e na esquerda pela floresta de Pinho, que mais tarde daria origem ao nome do bairro. Quase não havia casas nesse trecho.  Mais adiante, a estrada propriamente dita começava na oficina de caminhões da prefeitura, ao lado da qual havia uma vila de casas, onde morava a família do Marajó, um vaqueiro que veio para Portel, oriundo da grande ilha, para trabalhar com gado.

A partir dali, no lado esquerdo da estrada começava então o sítio do meu avô Joaquim Monteiro, constituído de um terreno comprado do seu Luso dos Santos havia muitos anos. Na primeira parte do terreno, junto à estrada, havia um curral, onde durante anos meu pai, Estanislau Monteiro, criou gado. Logo em seguida, havia uma casa de farinha completa, uma das mais bonitas casas de farinha que eu já vi na vida. A casa do sítio em si era muito humilde, de madeira enegrecida, sem pintura. Mais adiante havia a casa do Juscelino, um irmão de criação do papai, que lá morou durante muitos anos com a família. Juscelino na roça ali atrás por longo tempo plantou abacaxi e mandioca. Ao todo o terreno ao todo tinha cerca de 800 metros de frente por um quilômetro de fundura, chegando até quase o igarapé do Muim-Muim.

A viagem de caminhão pela estrada era uma aventura. Os mais sortudos iam na boleia com o motorista, o saudoso seu Jiló, mas a meninada  preferia ir na carroceria, equilibrando-se ao vento sobre o caminhão em movimento. Era uma diversão desafiar o risco de cair de cima do caminhão em alta velocidade, que ia parando ao longo do caminho para pegar agricultores ou carregar algumas sacas. Mais gratificante ainda era ver as propriedades. Aonde chegávamos éramos saudados por perus, galinhas e marrecos. Criação havia bastante. Até hoje quando escuto o canto do anu-coroca ou vejo uma árvore de embaúba me lembro daquelas paisagens.

Passando o sítio do meu pai, havia o sítio do seu Pedro Japonês, com sua horta sempre muito bem mantida. Logo depois tinha o sítio do seu João da Laury, como era conhecido o nicaraguense Juan Valle, casado com a portelense dona Laury. O sítio dele era muito bonito, tinha uma casa muito bem acabada e confortável, cheio de flores ao redor no quintal. Mais adiante havia a fazenda do seu Anésio, um dos maiores produtores portelenses, rico no cultivo de pimenta do reino. Essa fazenda ficava não muito longe do sítio do seu Leal, que cultivava frutas e mantinha uma boa criação de galinhas.

Mais adiante, o sítio do padre, como era conhecido o Sítio Emaús, contava com uma linda plantação de abacaxi, mantido por um projeto da Igreja Católica do qual participavam os adolescentes dos grupos  de jovens da igreja. Foi entre os garotos que iam para o sítio do padre que aconteceu um dos poucos acidentes, de que eu tive notícia, envolvendo alguém cair de caminhão. Foi, se eu não me engano, com o Ajaks Gomes, que caiu e sofreu escoriações nos glúteos, sem muita gravidade, mas de qualquer forma um grande susto, que lhe valeu muitas brincadeiras por parte dos colegas durante um bom tempo.

Havia também a propriedade do seu Chico Anacã, na frente da qual havia uma grande árvore de ingá, na qual subíamos para apanhar os frutos, sempre trazendo muitas sacas de ingá, que vínhamos comendo durante a viagem. Ali também se carregava no caminhão muitas sacas de feijão, arroz, milho e farinha.

Quando se chegava ao quilômetro dez, onde havia um igarapé muito gostoso, junto ao qual frequentemente parávamos para tomar banho, de repente acabava a mata fechava e se deparava com um grande campo de vegetação aberta, semelhante a uma savana, era o Campo de Natureza. Aquele campo de áreas branquinhas, resquício pré-histórico de algum mar interior, era um dos piores trechos da viagem. As rodas do caminhão simplesmente atolavam na área fofa. Muitas vezes a viagem acabava ali mesmo.

Mas quando passávamos o Campo de Natureza, chegávamos então finalmente ao ramal, onde se entrava novamente numa região de floresta fechada. Ali, verdadeiramente, a natureza era inclemente. Novamente os caminhões precisavam fazer um grande esforço para não atolar nos buracos e poças de lama.

Era incrível a dificuldade do percurso da estrada. Passávamos quase uma manhã inteira para percorrer apenas 40 quilômetros! Muitas vezes ficávamos pelo caminho, esperando reforço de um novo caminhão para rebocar o atolado, para que pudéssemos seguir viagem.

Aquele era o último trecho transitável da estrada. Ali, no ramal, em meio à floresta fechada, lá pelos quilômetros quarenta, havia um dos últimos assentamentos agrícolas iniciados pelo prefeito Felizardo Diniz. Era impressionante ver, em meio às agruras da natureza, os agricultores tentando arrancar seu sustento da terra. E ali se colhia muito, cana de açúcar, milho, feijão, mandioca, muita produção, que trazíamos no caminhão na viagem de volta para a cidade.

Mas, infelizmente, todo aquele projeto de desenvolvimento agrícola de Portel não foi além do mandato do próprio prefeito Felizardo Diniz. Em 1982, após a eleição do prefeito Elquias Monteiro, a prioridade deixou de ser o campo e a estrada, e passou a ser a cidade. Elquias começou uma reforma urbana, trouxe o fórum para Portel, abriu a praia da Vila e construiu ali um hospital, ginásio, associação de funcionários, museu, residência oficial do prefeito, além do novo fórum do Tribunal de Justiça.

Os projetos de assentamento do prefeito Felizardo foram abandonados. O transporte dos agricultores e da produção feito no caminhão da prefeitura foi definitivamente encerrado. A agricultura deixou de ser alternativa de desenvolvimento para o município.

Por volta de 2004, quase trinta anos depois de minhas primeiras viagens até o ramal, voltei a percorrer a estrada até o quilômetro dez.

A paisagem que se via agora ali era de abandono e desolação. Dos sítios que antes ladeavam a estrada, só havia ainda o sítio do padre, mas já sem a plantação de abacaxi. Do lado da estrada, só mato e nada de agricultores, a juquira invadiu o terreno onde antes havia as plantações. Nem mesmo o canto do anu-coroca se ouvia mais.

Os agricultores, deixados a pés depois que o prefeito Elquias Monteiro cortou o transporte de caminhão, foram abandonando as plantações, os que ficaram regrediram a um estágio de extrativismo e caça.

Ser agricultor em Portel se tornou sinônimo de dureza, estar “na roça”, como dizia pejorativamente o povo, se tornou sinônimo de estar numa pior.

Com o crescimento urbano, o sítio do papai, no início da estrada, começou a ser ameaçado de invasão. Meu pai, prevendo o pior, começou a dividir o terreno e a vender lotes, pois era impossível proteger toda a área do terreno. Sabendo da importância da área para a expansão da cidade, o prefeito Elquias, já em seu segundo mandato, entrou em negociação com o meu pai para comprar o terreno, mas como o pagamento das parcelas não foi concluído pelo prefeito, meu pai reteve parte do sítio onde ficava a casa do meu avô e do seu Juscelino. A área onde antes ficava o curral foi entregue à prefeitura.

Porém, com o passar do tempo, os invasores começaram a ameaçar de invadir o restante do terreno. Presenciei, em certa ocasião, cena dramática de o meu pai enfrentar invasor armado com terçado na mão. Depois, a prefeitura mesma começou a fazer pressão sobre a posse do terreno, mandando o próprio caminhão da prefeitura jogar lixo no local, de modo a tentar caracterizar o abandono da propriedade.

Em 2004, ano de eleições para prefeito, foi a última pá de cal. Os invasores fizeram a investida final sobre o restante da área do sítio, armados e munidos de material de construção entregue por caminhões contratados por candidatos às eleições , estes sedentos de votos dos miseráveis, eles rapidamente tomaram para si o restante da propriedade. Naquele ano havia levado amigos agrônomos para iniciar um projeto agrícola em Portel, a invasão violenta e premeditada pôs fim aos planos.

Hoje quase o bairro inteiro da Cidade Nova se localiza em área antes pertencente ao sítio do meu avô. Posteriormente meu pai ganhou na Justiça direito a indenização da prefeitura. A negociação do pagamento seria feita no mandato do prefeito Pedro Barbosa, eleito em 2004. Não tenho detalhes dessa negociação, uma vez que eu não estava próximo e que meu pai nutria muita amizade com o Pedro, mas o preço pago pela prefeitura foi simbólico diante de toda a extensão do terreno. Nunca pedimos reparações posteriores.

Este fato até hoje é utilizado por adversários anônimos para me atingir ou tentar manchar a reputação do meu pai, alegando que meu pai teria vendido o terreno mais de uma vez. Mas a indústria das invasões com motivações políticas não faria só a nós de vítimas em Portel. Em 2008 (outro ano de eleição) foi a vez da grande área da Amacol, a empresa multinacional que um dia simbolizou todo o sonho de grandeza do município, ser violentamente invadida. A mensagem era clara: não deveria haver espaço para outro poder em Portel que não o político.


Assim, com a Amacol fechada e seu terreno invadido, e os agricultores abandonados na estrada à própria sorte, cumpriu-se o desígnio sonhado pelos políticos: a prefeitura se tornou quase que a única fonte de empregos no município. E quem quisesse ter um emprego, tinha que pedir aos políticos.
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Este texto foi pensado inicialmente para ser uma trilogia junto com dois outros:

O objetivo era mostrar o passado e as novas possibilidades de desenvolvimento para o município. Esses artigos deveriam ser lidos em conjunto.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

DESEMPREGO EM PORTEL SEGUE O RITMO DO RESTANTE DO PAÍS

Depois de um ano de recuperação em 2014, o desemprego em Portel voltou a crescer em 2015, como já havíamos adiantado em meados do ano passado. Essas são as informações reveladas pelos números divulgados pelo CAGED, do Ministério do Trabalho. O ano de 2015 fechou com um saldo de 200 contratações em carteira assinada contra 262 demissões, resultando em uma perda líquida de 62 postos de trabalho.

Esse resultado negativo segue a tendência geral de perda de emprego, observada pelo país inteiro. É um dado desanimador principalmente quando comparado com o período de 2011 a 2013, em que Portel perdeu 1.156 postos de trabalho. Mas não é tão ruim quando comparado com o município vizinho de Breves, que teve uma perda líquida de 95 postos de trabalho. Breves amarga o segundo ano seguido de aumento do desemprego. Enquanto na capital, Belém, em seu terceiro ano de retração, fechou com quase doze mil empregos a menos em 2015.

Os dois municípios vizinhos oferecem, aliás, um bom comparativo na solução para a crise do fim do ciclo da indústria madeireira, que aconteceu em 2008. Enquanto Breves levou um golpe ainda mais violento que Portel com fechamento das serrarias, sofrendo perda de 1.201 empregos de carteira assinada, o município dos furos do Marajó logo se recuperou, encontrando vocação como prestadora de serviços de saúde e educação para os moradores das cidades vizinhas.

O Hospital Regional de Breves abriu em 2010 e, no período, várias faculdades particulares estabeleceram-se no município. Posteriormente o campus da UFPA em Breves foi ampliado, passando a oferecer mais cursos, inclusive de pós-graduação. Atualmente, dezenas de estudantes de Portel viajam diariamente para Breves, para cursar a faculdade, sem contar estudantes de outros municípios. Como resultado, entre 2011 e 2013, enquanto Portel perdeu 1.156 postos de trabalho, Breves ganhou 778 novos. Mas essa fase de crescimento do município dos Furos do Marajó parece ter se esgotado, e Breves entra no segundo ano de crescimento do desemprego.

De qualquer forma, fica o exemplo para Portel: cada município deve investir na sua vocação. Enquanto para Breves está localizada em uma ilha, junto a uma via fluvial que é passagem entre Belém e as principais cidades da Amazônia, e tem naturalmente a lucrar com o comércio e a prestação de serviços, Portel é continente, e fica localizada em uma ponta, que é fim de linha dos barcos.

A saída para Portel é investir em produção agrícola, na estrada, e no escoamento dessa produção para o restante do país, e do mundo. Esse é o remédio contra o desemprego. 

domingo, 3 de janeiro de 2016

COMUNIDADES DO CAXIUANÃ, BOLSA FAMÍLIA E 'EFEITO MORTADELA'



O artigo da Folha de São Paulo

Na edição de 19 de novembro último, um artigo publicado pelo jornal Folha de São Paulo transformou em notícia nacional os hábitos alimentares de uma comunidade no interior de Portel e sua relação com o programa Bolsa Família, do Governo Federal, ao mesmo tempo em que desnudou todo o preconceito da mídia contra os que precisam dos programas sociais.

O artigo, intitulado “Na Amazônia, Bolsa Família causa ‘efeito mortadela’ entre ribeirinhos”, divulgou os resultados de pesquisa realizada pela bioantropóloga norte-americana Barbara Piperata junto a comunidades do Caxiuanã, no rio Anapu, interior de Portel.


Tomando como ponto de partida uma pesquisa científica, o artigo é um belo exemplo de como o desconhecimento sobre a Amazônia e o viés ideológico da mídia distorcem a visão dos fatos.


Em seu artigo, o principal foco do jornalista Gabriel Alves é quanto à conclusão da pesquisadora de que o recebimento do benefício do Bolsa Família diversificou, mas não melhorou a alimentação dos ribeirinhos. Resultado esse chamado pelo jornalista de ‘Efeito Mortadela’, em razão da introdução desse item na alimentação dos beneficiários. Entre os comentários publicados no site, muitos leitores foram rápidos em condenar o “assistencialismo” bancado pelo Governo Federal.


Assim, o tom do artigo é claramente negativo quanto aos efeitos do programa Bolsa Família, ainda que mencione a afirmação da bióloga quanto a ser difícil afirmar se os impactos do programa são bons ou ruins. Na conclusão, afirma-se também que não há interesse por parte dos pesquisadores brasileiros em pesquisar regiões afastadas, e que tampouco houve interesse por parte dos representantes dos governantes quanto aos resultados da pesquisa.


Apresentação da Pesquisadora Barbara Piperata

A professora Barbara Piperata é bióloga formada pela Universidade do Colorado, nos Estados Unidos, onde obteve PhD em antropologia, e atualmente é professora na Universidade de Ohio. Seu principal campo de pesquisa é em energia reprodutiva, no estudo de práticas e estratégias pós-parto visando a conservação de energia para a lactação pela mãe e as condições de saúde do bebê.

Realizados nas comunidades ribeirinhas de Caxiuanã, no rio Anapu, em Portel, seus estudos comprovaram a situação de insegurança alimentar na população do interior do município e registraram detalhadamente os hábitos alimentares dos entrevistados. Os dados foram levantados em dois períodos. Primeiro em 2002, quando a bióloga morou durante dois anos no Caxiuanã, e avaliou 469 pessoas. O segundo em 2009, quando foram examinados 429 indivíduos.


Os dados foram publicados em 2011, em um artigo no American Journal of Physical Anthropology. Em novembro, Piperata apresentou os resultados de seu trabalho em evento do Centro de Pesquisa em Alimentos, na USP.

As conclusões da Pesquisa

Antes de fazer uma análise superficial e enviesada, é preciso refletir bastante sobre as constatações da pesquisadora norte-americana em Caxiuanã.

Entretanto, ao fazer aqui uma reflexão sobre a publicação da Folha de São Paulo, é preciso admitir, em primeiro lugar, que não tive acesso direto ao artigo da professora Piperata, o qual não está disponível gratuitamente ao público. Logo, não questiono o valor da pesquisa da autora, a qual se reveste da maior importância. Minhas conclusões se referem àquelas relatadas no artigo da Folha de São Paulo.


A principal conclusão do artigo do jornal é de que “a renda extra do Bolsa Família não melhorou os hábitos alimentares na região”. Os ribeirinhos agora conseguem ter acesso a produtos que eles antes apenas ocasionalmente podiam obter, tal como feijão e arroz, mas, por outro lado, aumentou o consumo de alimentos não saudáveis, tais como carnes enlatadas e biscoitos, ricos em gordura e sódio. Além desses produtos, aumentou o acesso a carne seca, mortadela e bens de consumo duráveis, tipo aparelhos de televisão e geradores elétricos.

Antes, os ribeirinhos dependiam essencialmente da pesca e caça, além da produção local de farinha de mandioca. Agora eles têm condições de comprar uma variedade maior de produtos no comércio da cidade mais próxima, através do auxílio do Bolsa Família.


A professora constatou também que, apesar de ter havido uma redução da ingestão energética total, houve ganho de peso por parte das mães. Uma possível explicação seria a diminuição da atividade física, em particular do trabalho na lavoura de mandioca. Antes da introdução do Bolsa Família na região, em 2005, 100% dos lares cultivavam mandioca. Em 2009, eram apenas 65%.

Essas mudanças geraram, segundo a professora, dois efeitos. Um é o “efeito mortadela”, ou seja, a introdução de alimentos industrializados na alimentação, tal como a mortadela. O outro é o “efeito fim do mês”, momento em que começa a escassear a quantidade de comida comprada na cidade no início do mês, quando o caboclo vai receber o benefício do Bolsa Família.


Professora Piperata apresenta resultados de sua pesquisa a comunidade do Caxiuanã. (Fonte: Universidade do Colorado)

Outros fatos observados pela professora parecem bastante evidentes, tal como a falta de atenção à saúde e à educação. Isso se revela, por exemplo, na baixa estatura média dos indivíduos e no baixo índice de massa muscular, resultantes da deficiência nutricional da população. Essa deficiência nutricional resulta, por sua vez, da própria falta de conhecimento da população quanto ao valor nutricional dos alimentos.


Reflexões sobre o Resultado da Pesquisa


Minha primeira reação foi de surpresa, quando li essa notícia da introdução da mortadela no cardápio de uma população interiorana de Portel. Desde as minhas mais remotas lembranças a mortadela é consumida pela população do interior. Da mesma forma que a carne em conserva, por não exigir de refrigeração, a mortadela é uma das fontes de proteína preferida pelo caboclo do interior, com a particularidade de que ele prefere comê-la frita, principalmente acompanhando o açaí.


No entanto, aqui é preciso fazer uma digressão sobre o atual ambiente político que vive país.


Para o leitor (e eleitor) das grandes cidades, ‘mortadela’ se tornou um nome pejorativo para chamar as pessoas que apoiam o Governo Federal, ou se beneficiam dos programas assistenciais do governo. Essa expressão parece ter origem na notícia de que, em agosto passado, o governo teria pagado lanche de pão com mortadela para quem fosse à manifestação em seu favor. Daí que a notícia da introdução da mortadela na alimentação dos beneficiários do Bolsa Família na Amazônia viesse perfeitamente a calhar para aqueles que ridicularizam os programas assistenciais do Governo Federal e aqueles que são beneficiados.


Todavia, intrigado quanto ao consumo de mortadela pelos caboclos do  Caxiuanã, resolvi tirar algumas dúvidas. Dias desses, como tinha em casa uma visita que é moradora do rio Anapu, resolvi perguntar a ela se o hábito de comer mortadela é novo para as comunidades do Caxiuanã.

Ela me veio com uma resposta ainda mais intrigante. Segundo ela, os moradores de Caxiuanã, sempre se confiaram na abundância de carne de caça, como fonte de proteína animal, por isso não comiam com frequência mortadela. Agora, a compra de mortadela na cidade seria um resultado do empobrecimento da fauna na região da Floresta de Caxiuanã. Assim, logo aquela que sempre foi uma das florestas mais ricas e intocadas de Portel, estaria vendo na atualidade o empobrecimento da sua população animal, sobretudo das espécies mais caçadas, tais como pacas, cutias, veados e tatus.

Outra conclusão que parece equivocada do estudo é afirmar que o empobrecimento da dieta do ribeirinho seria resultante do Bolsa Família, quando na realidade ela tem como causa a falta de conhecimento e os próprios costumes e crenças da população. Essa falta de conhecimento quanto ao valor nutricional dos alimentos é notória e se mostra na aversão do povo em comer frutas e verduras, que tem a população de Portel, que não vem de hoje.


A população nunca deu valor ao consumo de frutas e verduras. Mesmo na zona urbana de Portel, sempre foi abundante o número de árvores frutíferas, principalmente mangueiras, murucizeiros, goabeiras e ameixeiras. No entanto, a população não cultivavava o costume de tomar sucos de fruta natural, a não ser os sucos congelados, ou ‘chopes’ como chamados pela população. Em vez disso, era generalizado o consumo de sucos artificiais em pó, o Tang ou Ki-Suco, tão populares até os anos 1980, e fabricados por multinacionais norte-americanas.

Também no interior o cultivo de pomares e árvores frutíferas não era incentivado. Minha visita conta que quando propôs ao pai plantar goiabeiras, recebeu a seguinte resposta: “as frutas servem só pra atrair pipira (Cyanicterus cyanicterus)”.

Também o consumo de verduras e legumes sofria grande resistência por parte dos moradores. Lembro que quando pedia salada durante as refeições, um amigo sempre respondia “quem gosta de comer folha é jubuti e preguiça”.


Diferente era o comportamento quanto aos frutos das palmeiras, tais como açaí, bacaba e pupunha. Mas as frutas nunca foram vistas como boa fonte de alimento. Mesmo as mangas, tão abundantes na cidade, jamais foram colocadas no mesmo status que o açaí. Lembro que apesar de ter comido tanta manga em Portel, eu só vim a descobrir como era gostoso o suco de manga na casa de uma missionária alemã, que o servia durante as visitas. Da mesma forma procediam os americanos, que moravam na Amacol, e estavam o tempo todo dando às suas crianças mamadeiras com suco natural de frutas, fato esse que eu nunca vi por parte da população local. Apesar da abundância de frutas.


No entanto, o jornalista se mostra incapaz de saber analisar a natureza das mudanças constatadas pela pesquisadora norte-americana.


Essa incapacidade advém da flagrante falta de conhecimento do jornalista da Folha quanto aos hábitos dos moradores da Região Amazônica. Em particular um dado deixa clara essa ignorância. O texto afirma que os ribeirinhos viajam oito horas de Caxiuanã até a cidade mais próxima, que seria Breves. Mas se tivesse pelo menos buscado ver onde se localiza Caxiunã no mapa, teria visto que a cidade mais próxima é Portel, onde fica a sede do município, e não Breves.


Enfim, as transformações no modo de vida dos ribeirinhos no interior da Amazônia foram muitas nos últimos anos. Mas o jornalista se deteve num só, que ele chamou de ‘Efeito Mortadela’, expressão essa provavelmente não utilizada pela cientista em seu artigo, mas que serve ao autor para menosprezar os beneficiários dos programas do Governo Federal.


Esse raciocínio enviesado, próprio da imprensa conservadora, perde de vista algumas das transformações mais profundas pelas quais passa o ribeirinho no interior da Amazônia após a introdução do Bolsa Família.


Antes a vida do caboclo se regia pelos ditames da natureza, tal como a época de colheita do açaí, da mandioca ou a pesca do peixe. O ritmo de vida era ditado pela natureza. Mas hoje existe o “efeito começo do mês”, como diz a pesquisadora. Os ribeirinhos têm data todo início do mês para fazer viagem até a cidade mais próxima para comprar os mantimentos necessários e, a partir de então, regrá-los até o início do próximo mês. Ou seja, os caboclos assumem um ritmo de vida dos assalariados urbanos.


Existem outras transformações ainda mais profundas por que passam as comunidades no interior da Amazônia causadas pelo acesso aos programas do Governo Federal.


Desde o fim do Ciclo da Borracha, o caboclo amazônida viveu relativamente isolado do capitalismo mundial. Não produzindo nenhuma commodity de maior valor no mercado nacional ou internacional, ele se recolheu a um modo de extrativismo autônomo, em que a maior parte do que ele precisava para sobreviver vinha diretamente da natureza, cultivando apenas a mandioca, a qual, além do consumo próprio, servia como moeda de troca no escambo com os regatões.


Hoje o seu modo de vida está mudando. Até a ida à cidade não se dá mais de canoa a remo, mas sim em uma ‘rabeta’ movida a motor a óleo diesel. Seja no óleo diesel ou na fonte de proteína, os caboclos da Amazônia se encontram hoje cada vez mais dependentes do consumo de produtos fabricados pelas grandes empresas nacionais e multinacionais.


Desta forma, acontece assim a inserção do caboclo amazônida no capitalismo internacional (utilizando-se de uma expressão dos teóricos marxistas), pelo incentivo ao consumo. Ironicamente, aquele mesmo mercado que fecha suas portas aos seus produtos dos ribeirinhos, é o mesmo que aceita esses ribeirinhos apenas na condição de consumidores. Mas não na condição de produtores. O ribeirinho da Amazônia deve ser inserido no mercado capitalista apenas em condição passiva, ou seja, no papel de consumidor dos produtos dos grandes conglomerados industriais da Região Sudeste.


É esse o principal efeito do Bolsa Família na Amazônia.